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terça-feira, 11 de outubro de 2016

"Há tardes em que os beijos rompem as nuvens"


Os primeiros raios de luz forçam a sua entrada na janela do quarto, tremeluzindo por entre as gotículas de água nesta manhã chuvosa.

“Foi apenas um sonho.” – Penso para comigo, sentindo ainda o perfume do teu corpo, o mel nos teus lábios e… recuso-me a abrir os olhos.

Deixo-me embalar no pensamento, e recordo essa tarde que passou entre o infinito instante de um primeiro beijo.

“Não foi sonho..! É impossível os sonhos serem assim tão doces.”

Que lindo despertar este, quando constatamos que a realidade supera a imaginação dos nossos desejos mais loucos, e que os sonhos são apenas uma ténue neblina de segredos por desvendar.

A chuva cai lá fora. O tempo está triste mas, eu levanto-me com um sorriso.

Sorrio, por saber que voltarei a sonhar!


© H. Vicente Cândido, Peniche 11-10-2015
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sábado, 27 de agosto de 2016

"Olá a um Adeus!"

Alexander Sheversky - Ballet
Por vezes uma conversa, mesmo que escrita, começa com um 'adeus'.

"Não vás!", alguém me disse. "Gosto de te ver por aqui, e de te sentir perto, mesmo sabendo estares longe."
E... Eu não fui...

Como é possível que uma carícia distante e um pensamento mútuo de desejo, se fundam na impossibilidade de uma noite de amor?
Não sei! Mas, talvez impossível seja ignorar o coração e a alma. Talvez até os sonhos sejam uma realidade que apenas se encontra distante.

Adeus?
Não... Até à próxima!
Para quê despedir-mo-nos do desejo, se ele retorna ainda mais forte, apenas com uma simples palavra murmurada ao ouvido e a recordação de um olhar?

Vou contar-te pormenores de manhãs futuras, onde ainda não te acordei com um beijo...
Vou imaginar a teu semblante sereno ao adormeceres nos meus braços...
Mas... Não vou dizer 'adeus'!

Recordo agora em segredo o teu sorriso e, tentando sem conseguir, forçar o pensamento a abandonar a tua imagem, digo-te apenas, com carinho:

Até breve.!

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© Hélio V. Cândido,  
27-08-2015 Atouguia da Baleia

domingo, 31 de julho de 2016

"Em Jeito de Diário" - parte 3 de 3 (final)


Demorou tempo até deixar de colocar as prioridades de quem não merece, à frente dos meus próprios desejos mas, confesso que foi necessária muita força de vontade e uma ou duas mensagens amigas, de incentivo, concordância e apoio.

Lá está a Amizade outra vez. Que coisa bela!

Como é possível que tais palavras de conforto cheguem de quem menos convívio tinha? Afinal… são lindos os mistérios desta vida.

Olho alguns meses para trás, e percebo finalmente o que esta recém-adquirida liberdade de compromissos sentimentais me trouxe. Presenteou-me com a oportunidade de trocar umas primeiras e simples palavras que deram origens a amigos sinceros. Agora sim, posso dar largas a sentimentos mais puros, sem ter por cobertura a sombra da desconfiança iluminada por vezes pela fraca luz da anuência.

Se a vida corre bem? Claro que não! Nunca corre… há sempre algo que podemos melhorar. Mas tenho agora o vislumbre de um futuro que, embora incerto, está à espera, no final de uma estrada longa e sinuosa, mas longe dos terrenos planos e sedutores do passado, que ostentavam falsidades e ocultavam armadilhas por cada metro percorrido.

E pronto… mais uma folha de um guardanapo de papel escrita, que acabou por se transformar em duas, depois em três… e acabei por terminar o resto desta história em frente do computador.

Se terei mais para contar? Se foi realidade ou ficção? Quem sabe…

Deixo-vos com uma frase do grande “Pessoa”: "Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!"

"Em Jeito de Diário" - parte 2 de 3


A caneta continua a escrever, enquanto a fútil tentativa de sentir raiva dá origem a um sorriso.

«Talvez fosse melhor assim.» – Repito para mim baixinho. Mas o coração ainda não me deu provas do que a lógica tem como certo. – «Como é possível, depois de quase uma década de amena estabilidade, a vida dar tantas voltas num espaço de tempo tão curto?»
Olho para estes últimos dois anos, com os seus altos e baixos, acarretados com problemas e alegrias. Lembro-me dos usuais convívios, cada vez mais espaçados no tempo, dos contactos com amigos, cada vez mais raros, de novos conhecimentos e amizades que a pouco e pouco foram surgindo…

Amizade… Palavra estranha, essa.

Dou por mim novamente a sorrir.

Afinal, os amigos dignos desse nome a que eu dou, talvez, mais importância que a palavra “Amor” (usada agora por tudo e por nada em qualquer reles telenovela) continuam a sê-lo. Sinto por vezes a sua tristeza nas poucas conversas que temos, pois um verdadeiro amigo também tem o direito de ficar triste quando não nos vê felizes, e mais ainda, quando se vêem quase obrigados a fazer escolhas impossíveis em prol de um ambiente mais salutar, onde os ciúmes de um, se sobrepõem à vontade de muitos.

sábado, 30 de julho de 2016

"Em Jeito de Diário" - parte 1 de 3


Aqui estou eu, novamente a rabiscar algumas palavras nas pequenas folhas amarrotadas de um guardanapo, sentado exactamente na mesma mesa de esplanada onde por tantos anos desfrutei de uma companhia que pensava ser eterna.

Olho para a cadeira vazia a meu lado, e as imagens dos tão belos momentos que passamos juntos, entre conversas e olhares de cumplicidade, passam por mim a correr como num antigo filme mudo, ainda a preto e branco. Sem dar por isso, já passou um ano… Dois anos... Três... Não consigo conter uma lágrima que teimosamente insiste em querer vir espreitar o sol deste final de tarde.

«O tempo passa a correr.» – Penso para comigo.

A ténue linha entre a felicidade e a tristeza enrola-se na minha mente em voltas complexas, tal como a mais elaborada renda de bilros, onde apenas podemos apreciar a complexidade e beleza do resultado final, mas é impensável até para o olhar mais atento e treinado, distinguir todas as suas voltas e contravoltas. 

Em vão, tento forçar-me a pensar nos momentos menos bons que passámos, e sinto-me frustrado ao constatar que apenas as boas recordações ficaram.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Pedido Impossível...


A noite findou e, a madrugada nasceu sem um sorriso.
Indaguei… Perguntei… Por dias e meses chorei…
Mas finalmente sei o porquê.
O porquê da distância ser cada vez maior…
O porquê das palavras já não aquecerem as manhãs frias de inverno…
O porquê de não ouvir no teu pensamento a palavra Amor.
E... Agora que sei… Caem lágrimas por um rosto que já não espera sentir novamente o calor do teu sorriso.
E… Agora que sei… Foi minha a culpa.
Chama-lhe ingenuidade… Credulidade… Confiar demais numa pretensa amizade…
Chama-lhe o que quiseres… Não estás longe da verdade!

A tarde terminou e, as trevas avizinham-se longas e melancólicas.
Contenho em mim explicações que não pedes sobre um assunto encerrado e, enterrado sob as questões que nunca quiseste colocar.
Retraio muito a custo a vontade de te enviar mil beijos no vento, cada um deles levando um pedido impossível banhado numa lágrima:
Desculpa, eu te peço!
Mas… Eu sei. Eu sei que até as palavras mais frias e distantes ofertadas… Nem essas eu mereço!

Começa o dia e, o sol agracia-me com a recordação do teu olhar.
Sinto-me feliz com a singela retribuição de um carinho mas, guardo para mim essa realidade quase certeira de momentos únicos que dificilmente se repetirão.
Eu sei… Eu sei que, por mais que pese no coração, por mais que tente... Há erros indeléveis impossíveis de apagar mas, prefiro mil vezes fechar os olhos para sempre do que, por um ínfimo segundo apenas, falhar contigo… Novamente!

sexta-feira, 1 de julho de 2016

"Reencontro"

arte por, Leonid Afremov

Cheguei, finalmente.
Os teus olhos recebem-me com o brilho característico da alegria e da saudade. A ânsia de um beijo proibido é parcamente atenuada por um cumprimento mais formal:
“Olá. Como estás?”
As nossas mãos tocam-se num gesto involuntário e a vontade de te arrastar pelo braço daquele local público e te guiar até à privacidade do quarto, acende-se em mim como um farol.
«Será que alguém percebeu?» – Penso para comigo.
Tento disfarçar, mas quando o meu olhar se cruza com o teu naquele instante que parece durar uma eternidade, não consigo conter um sorriso e sinto a inevitável cor rubra formar-se no rosto.

Estavas a pensar o mesmo… Não chegaríamos ao quarto!

O silêncio momentâneo e fictício, volta a dar lugar ao burburinho característico do café. Dirijo-me ao balcão depois de cumprimentar distraidamente os outros ocupantes da mesa, mas não resisto a passar a ponta dos dedos pelos teus cabelos numa caricia dissimulada.
A espera antes de ser atendido, contribui com o tempo necessário para controlar os pensamentos, mas o desejo… Esse aumenta a cada passo que dou na tua direcção.

A noite continua, entre conversas alegres, banais, e assuntos mais tristes. Opiniões são dadas… Comentários feitos… Os minutos transformam-se rapidamente em horas e, entretanto, está na hora de ir.

Não foi hoje, nem será amanhã. Talvez para a semana... ou talvez até nunca venha-mos a ter o prazer de saciar o fogo dessa paixão quase impossível, ateado nas labaredas de um primeiro olhar.
Mas… Eu nunca gostei da palavra “nunca”.

Levantamo-nos, e começa a sucessão de cumprimentos, agradecimentos e votos de boa viagem.
Tu ficas para o fim.
As palavras de despedida fluem num abraço informal mas, quando as nossas faces se tocam, é impossível resistir a trocar a suave caricia de um beijo.
“Um dia…” – dizes-me baixinho ao ouvido.
“Sim…” – respondo. – “Pena esse dia não ser já hoje.” 

 Os nossos braços separam-se, renitentes e, enquanto me afasto e deixo em voz alta um último “Boas noites”, adivinho o teu pensamento a proferir baixinho:
«Quero fazer amor contigo!»
Olho para trás…
«Eu também.»

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H. Vicente Cândido, 1 de Julho de 2015

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Apenas mais uma tarde...

Sob o calor do sol, o teu corpo desnudo descansa a meu lado, de olhos fechados e, os dois ou três salpicos de areia que te abrilhantam a face, tornam ainda mais doce e sedutor o teu sorriso.
Adormeceste com o burburinho das ondas, numa maré que subia calma e lentamente.
Enquanto lia baixinho as páginas de um livro que nos leva a acreditar ser possível, até na mais simples história de vida, todos termos a capacidade de voar rumo a um destino ainda não traçado, pensei ser talvez o som da minha voz que te embalava na serenidade dos sonhos.
Foi mais forte do que eu, resistir a fazer-te uma carícia.
Acordaste… Não em sobressalto mas, murmurando as palavras mais doces que tinha escutado até então:
"Olá Amor! Já adormeci, não foi? "
Não respondi. Limitei-me a interiorizar todo o sentimento que um pequeno conjunto de letras pode ter, quando genuínas e ditas com sinceridade.

Passaram algumas horas…
O vento obrigou-nos a sair daquele lugar e, não tardaria muito, irias partir.
Parámos num local mais recatado, na exacta altura em que o sol desaparecia entre rochas nuas de tons acastanhados e o azul acinzentado do mar.
Uma vez mais, a conversa séria sobre os problemas da vida deu lugar ao silêncio.
Palavras para quê, quando as cores plácidas do final do dia contam sem usar a voz uma mesma história de vida que uniu na paixão dois corações?

Ficamos assim… por minutos intermináveis sentindo o calor do nosso desejo esquecer a vida e o mundo, unindo-se na ternura de um beijo.
 
"Sunset Kiss" por, Gordon King
Despedida.
É sempre difícil a despedida.
Deixamos para trás o pôr-do-sol e, pouco depois as nossas mãos tocavam-se num último adeus. Seria apenas por um dia mas, até o mais efémero segundo sem te saber perto de mim, parecia uma eternidade.
Não resisti a fazer-te sorrir uma vez mais antes de partires:
“Esta noite vou procurar por ti nos sonhos e… amanhã espero por ti com um beijo!”
Já não escutaste as últimas palavras que disse baixinho, não retraindo uma pequena lágrima:
“Boa viagem… meu Amor!”

quinta-feira, 2 de junho de 2016

“São Rosas, meu Senhor”

            

            Ainda com os olhos semicerrados, senti os teus passos leves aproximarem-se.
            A estranha ausência de vento no amanhecer do dia, permitia ouvir ao longe o murmurar das ondas, e a sua suave canção de embalar impelia-me a ficar mais uns minutos no conforto da cama.
            «Bom dia Amor!» – Ouvi, ao mesmo tempo que sentia o calor dos teus lábios na minha face.
            Despertei com o teu rosto sorridente, divertido e meigo, olhando para mim.
            Nos teus braços, um tabuleiro ornado com uma toalha de linho, bordada com motivos florais, e sobre ele um pequeno cesto, também coberto com um guardanapo de pano.
            Recordei a primeira vez em que, depois de uma noite de amor onde adormecemos nos braços um do outro, tomamos o pequeno-almoço na cama e, não conseguir conter um sorriso.
            «Olá!» – Disse eu, ainda ensonado. «O que trazes aí?»
            «São rosas, meu senhor…» – Respondeste, fazendo uma ligeira vénia. 

            A história misturou-se por instantes no meu pensamento, trocando o D. Dinis e a rainha Isabel, pelo romance entre D. Pedro I e a aia de D. Constança.
            «Ai sim, Inês… Posso então ver o que levas no regaço?»
            Arrependi-me no mesmo instante dos dois erros acabados de cometer. O primeiro, histórico, e o segundo muito mais grave, trocar o nome de quem me tinha ido despertar com tanto carinho.
            Antes de podermos dizer mais alguma palavra que tornasse aquele início de dia desagradável, saltei da cama e coloquei os meus braços em torno da tua cintura. Com o susto, desequilibrámo-nos, caindo os dois sobre os lençóis e, perante o meu espanto, do cesto sai uma linda e perfumada rosa vermelha. 

            «Desculpa, amor!» – Disse-te, pegando na flor e passando-a levemente sobre o teu rosto, percorrendo depois os teus lábios e continuando essa suave caricia até ao limite do peito desnudo.
            O nosso olhar cruzou-se num desejo primordial, onde a razão desapareceu dando lugar aos instintos mais básicos da criação. O toque sôfrego dos nossos lábios, depressa se transformou em mais meia hora de paixão, terminando os dois lado a lado, olhando nos olhos um do outro, ainda com a respiração ofegante.
            «Não estava previsto!» – Dissemos em uníssimo, não evitando uma sonora gargalhada.
            Depois de um rápido “duche” a dois, ainda com a toalha enrolada na cintura, perguntei:
            «Então e, o pequeno-almoço?»
            Não tive tempo de me desviar de uma “palmada”, supostamente carinhosa mas que me deixou a nádega esquerda dorida.
           «Eu já fiz o milagre das rosas…» – Respondes-te. «Agora vai tu fazer as torradas!» 

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© H. Vicente Cândido, 02-06-2015 
(arte: "Simple Graces", por Richard S Johnson)

sábado, 21 de maio de 2016

No Ritmo Insano do Amor e Desejo

Os escassos centímetros que nos separam, apenas aumentam a vontade de te sentir ainda mais perto.
Tento abster-me da tua presença. Escutar o vento, que teima em açoitar as janelas neste final de tarde onde o sol ainda se sente tímido para brilhar com todo o seu esplendor. Tento focar-me no ecrã em minha frente que emite uma luz pálida, transformando-se numa difusa neblina à medida que sinto cada vez mais próximo o calor do teu corpo. Tento concentrar-me no trabalho que já há muito deveria estar concluído e, forço-me a não olhar para ti, mas… O teu rosto toca-me ao de leve na tentativa de amenizar o reflexo do vidro, espreitando por cima do meu ombro com um olhar cativante e sedutor.

Pronto… Desisto… Não aguento mais!
Esqueço o vento, o trabalho, o local onde estou e, não resisto a procurar os teus lábios num apetite incontrolável, sentindo nesse mesmo instante a retribuição escaldante que, contra todas as previsões e convenções, nos impele para lá da loucura, iniciando um fogo passível de ser extinto apenas pelo culminar de uma explosão de prazer.


Entre o momento de um beijo e caricias suaves por vezes descontroladas, os nossos corpos já desnudos entregam-se ao desejo numa paixão ardente, ignorando o mundo e deixando o suor escorrer livre e ofegante por todos os poros.
Palavras de amor erguem-se baixinho, alternando entre outros sons, mais característicos do momento e quase impossíveis de serem abafados… Mais alto… Cada vez mais alto… Num compasso sincronizado que cresce exponencialmente até atingir um ritmo frenético e… Deixamo-nos cair exaustos sobre as roupas que tinham misteriosamente ocupado todo o espaço do pequeno escritório.

Ficámos ali, olhando-nos nos olhos, juntinhos a sorrir sabe-se lá por quanto tempo até que, de soslaio, reparo na mensagem que piscava no ecrã do computador. Levanto-me de um salto e, incrédulo, não podia acreditar no que lia antes do sistema se desligar sozinho.
Um sinal de perigo com fundo amarelo sinalizava o aviso em destaque sobre um fundo baço:

“ERRO! IMPOSSÍVEL GUARDAR DOCUMENTO. 
       O WINDOWS VAI ENCERRAR EM… 4… 3… 2… 1…”

 Uma mão delicada acaricia-me a face levemente e com ternura.
“ – O que aconteceu?” – Perguntou.
Sinto-me sorrir com a resposta, antes mesmo de articular qualquer palavra:
“ – Sabes amor… Acho que vamos ter de repetir tudo novamente.”

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Um brinde ao teu olhar...


Olho para ti!
A satisfação da partilha de uma simples refeição, não se compara ao prazer de estar ao teu lado. Esvai-se o apetite mundano pelo farto repasto em minha frente, mas fica a insaciável fome de carinhos.

Olho para ti!
Finjo não prestar atenção a cada gesto que fazes. Finjo distrair-me com quem por nós passa, lançando de quando em vez a tentativa de um olhar de interesse, mas… É impossível mentir tanto assim.

Olho para ti!
Sinto-me saciado, empanturrado até, mas continuo com um vazio só preenchido pela intimidade entre nós os dois.
Hoje não vou ter essa sorte!

Resta-me apenas a refeição do desejo e, é perante esse fraco aperitivo que os nossos copos se tocam e as vontades se cruzam num olhar do qual é impossível fugir. Levamos em simultâneo os nossos lábios à taça de vidro cristalino, e tomamos de um gole apenas, a promessa de um beijo.

Sinto nesse instante que o mundo somos apenas nós, e sorrio.
Sorrio porque… sou feliz quando olho para ti!

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Peniche, 17 de maio de 2015 

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Raios partam a velha!

Primeiro, ainda me senti tentado a pousar por um momento a chávena de café, para escutar com mais atenção aquela voz que ia gradualmente subindo o nível dos decibéis, mas optei por tentar ignorar.
Claro que, o ênfase vai para a palavra “tentar”, pois uns segundos após ter começado, passou a ser completamente impossível deixar de ouvir o timbre esganiçado que ecoava mesmo por detrás de mim, dizendo com a língua bem afiada, mal de tudo e de todos.
Num gesto quase involuntário, vi-me a espreitar disfarçadamente sobre o ombro esquerdo, tentando perceber melhor o que se passava dentro do café, mas o sol ameno que envolvia toda a pequena esplanada, transformara a janela num grande e cristalino espelho, tornando impossível ver, fosse o que fosse, no interior do estabelecimento.  

«Raios partam a velha!» – Pensei para comigo, apercebendo-me no mesmo instante que não fazia a mínima ideia da idade de quem “grasnava” tão fogosamente. 

Quando o discurso começou, (e escolhi a palavra discurso em vez de conversa, porque ela não dava oportunidade a alguém de sequer tentar interromper) ainda pensei por uns instantes que iria falar sobre o seu desagrado perante os benefícios para os Chineses em Portugal, levando-me quase a esboçar um sorriso de concordância, mas… não foi necessário mais de alguns segundos, para entender que a cultura da senhora em questão era inversamente proporcional à sua fluência na dádiva da ignorância.

É que… além de parva, era estúpida!

Depois de afirmar repetidamente que não gostava de Chineses, e era incapaz de entrar numa das suas lojas sem ser acompanhada, pois tinha ouvido dizer que uma senhora entrou lá sozinha, ficando desaparecida durante bastante tempo, sendo mais tarde encontrada esquartejada, e uma fiscalização teria supostamente encontrado pedaços de carne humana no Sushi, ainda falou mais algum tempo das qualidades dos Samurais na China, da diferença dos produtos para consumo local e exportação, e da situação das crianças chinesas mais desprivilegiadas em grandes cidades, como Tóquio.
Depois, dentro da mesma sequência exemplar de cultura, inteligência e delicadeza, foi a vez de expressar a sua opinião sobre os indianos, sobre as brasileiras, sobre a raça negra, sobre os países do leste…

Irra… Raios partam a velha!

Levantei-me, lançando um olhar entristecido à chávena de café ainda meia e já fria, que eu distraidamente ainda segurava pela asa. Bebi o resto daquele líquido escuro de um só gole, sentindo um arrepio que me percorreu o corpo todo, e virei-me para a porta, com intenção de me dirigir ao balcão, pagar e desaparecer dali o mais rápido possível. Mas… de repente, silêncio… A voz tinha-se calado, sendo substituída por uma respiração ofegante.
Parei a tempo de ouvir uma voz masculina a dizer num tom calmo:
– Concordo com a tua posição!
– Só tinhas de concordar! – Replicou a mesma voz esganiçada, mas ainda ofegante. – Tudo o que eu disse…
Foi interrompida pelo mesmo homem:
– Não percebeste. Concordo com a tua actual posição em que finalmente estás calada. Só ainda não me levantei e deixei-te aqui a falar sozinha, porque seria uma vergonha ainda maior que aquela que me fazes passar com as tuas conversas parvas.

Finalmente, entrei no café.

Alguns clientes apressavam-se para pagar a despesa encostados ao balcão e, na única mesa que se mantinha ocupada, o casal ali sentado prendeu-me o olhar por alguns instantes, num misto de espanto e incredulidade.
Do lado direito, um homem já de alguma idade, de pela negra, um semblante calmo e sereno, e um bigode farto já amarelado pelo tempo, olhava de perna traçada distraidamente para as páginas do jornal. Em sua frente, a senhora que, à partida, deveria ser a esposa, mulata, de cabelos grisalhos, vestindo um “sari” que lhe envolvia o corpo como um cobertor enrugado, fulminava-o com uns olhos vermelhos, um pouco mais finos que o normal, deixando adivinhar a sua origem nipónica.


Neste momento, não tenho a certeza se pensei, ou disse em voz alta, mas…
Porra! Raios partam a velha!

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Peniche, 12 de Maio de 2015

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Abril sem Cravos


“Abril sem Cravos!”

Sim… É Abril!
E depois?
E depois desse adeus
que marcou os passos
de uma nação a marchar
contra a opressão, tirania,
na esperança de um dia
poder escrever… Falar!

É Abril! E depois?
E depois da censura,
das prisões e da tortura?
E depois da ditadura
ser finalmente abolida
pela voz de um povo unido
que não seria vencido?
Depois de cair o pano
sobre a dita… Primavera
de um tal Marcello Caetano…
E depois?

É Abril!
Grita uma voz pungente,
erguendo cravos na mão.
Viva a revolução!
Viva a liberdade!
Pobre Portugal…
Onde está agora
a terra de fraternidade?
Para onde emigraram
as promessas de trabalho,
saúde, oportunidade?

Mas… É Abril…
Diz alguém na multidão
soando fraca, abatida.
Sim… É Abril! E Então?
Isto é vida?

Venham de lá águas mil
e levem na enxurrada
essa corja de ladrões,
de vigaristas, corruptos,
de mentirosos, cabrões!

Venha a chuva da razão
regar a possibilidade
de florescer a nação.
De recuperar o povo
de um  estado débil, febril
e, então com novo alento,
com acrescida vontade,
gritaremos em uníssono:
Viva a Liberdade!
Viva…
Viva o 25 de Abril!

© H. Vicente Cândido,
Peniche, 23 de Abril de 2016

terça-feira, 22 de março de 2016

“Uma Lágrima por Bruxelas”




“Uma Lágrima por Bruxelas”

Amanhece triste, o sol da primavera.
A pomba branca da paz, ficou esquecida.
Chora o mundo, chora a própria vida.
Tétricos são os tempos, nesta era.

Vestem-se de luto todas as bandeiras
que sobem a meia haste, em puro pranto.
Choram um povo e um Rei sobre o seu manto,
mágoas negras, amarelas e vermelhas.

Erguem-se ao vento vozes inconformadas
com um fanatismo porco, desumano
que, tem no âmago apenas o terror.

Esperam que essas almas, desalmadas,
abram os olhos, conscientes se um engano
e, possam trocar o ódio pelo Amor.


© H. Vicente Cândido, 22-03-2016

terça-feira, 15 de março de 2016

A Ilha da Vergonha (015)

As sobrancelhas do homem ao leme do Almagreira 1974 arquearam-se de satisfação ao avistar a bóia vermelha que flutuava no meio das ondas. Virou barco ligeiramente para bombordo e cortou toda a potência aos motores. O sol reflectiu no branco brilhante dos sete metros de fibra de vidro da embarcação, despertando alguns olhares curiosos de banhistas que descansavam pachorrentamente na pequena praia do Carreiro do Mosteiro.
Aparentando cerca de quarenta anos, o homem saltou para o convés com a agilidade de um garoto, mostrando um tronco nu bronzeado e bem constituído com a metade superior do fato de mergulho a pender-lhe pela cintura. Debruçou-se para fora e, com precisão, apanhou com um gancho a corda que segurava a bóia.
«É mesmo aqui o sítio.» – Pensou para consigo. Um brilho de prazer reflectiu-se no azul cristalino dos seus olhos, antecipando a serenidade que o mergulho naquelas águas frias sempre lhe proporcionavam.
Preparava-se para lançar a âncora e vestir o equipamento de mergulho quando é sobressaltado por uma sirene estridente seguida por uma voz metálica saída de um megafone:

“ATENÇÃO ALMAGREIRA 1974, NÃO FAÇA NENHUM GESTO E NÃO LIGUE OS MOTORES. PERMANEÇA ONDE ESTÁ!”


A embarcação negra da Polícia Marítima abrandava agora a marcha deixando atrás de si um rasto na ondulação como uma auto-estrada que se abria à sua passagem. Acompanhando o barulho da sirene e a voz autoritária do polícia, um festival de luzes azuis e vermelhas tornavam aquela imagem já por si ameaçadora, ainda mais imponente.
Os dois barcos alinharam-se lado a lado perante o olhar atónito do homem do barco branco. Segundos depois, dois dos três membros da embarcação da polícia soltavam para bordo do Almagreira.
O vozeirão que se tinha ouvido pelo megafone contrastava em tudo com a primeira figura a apresentar-se. O agente de primeira classe Amílcar Rocha – como se via escrito em destaque com letras prateadas na placa presa ao bolso esquerdo da farda azul do oficial – apresentou-se com uma leve continência ao homem do barco, ignorando o polícia que saltava atrás dele.
– Estamos a inspeccionar todas as embarcações que se encontrem num raio de cinco milhas da ilha – informou. – Posso saber o seu nome e o motivo de estar aqui parado?
A voz, embora mais nítida e grave, era sem dúvida a mesma que tinha há instantes berrado no megafone. O agente aparentava os seus cinquenta, sessenta anos. Com pouco mais de um metro e sessenta de altura, cabelos curtos já com um tom grisalho e um estômago que o cinto demasiado apertado deixava adivinhar ser um bom prato (e um bom copo), olhava para o proprietário do Almagreira com ar interrogativo à espera de ver as suas perguntas respondidas e tentando descodificar alguma reacção por parte do inquirido.
– Claro – disse o homem. – Chamo-me João Martins. Costumo fazer mergulho aqui. Mas… há algum problema? Aconteceu alguma coisa.
– É só rotina. – Respondeu o agente ao mesmo tempo que perscrutava com os olhos o conteúdo visível do barco. – Então e… Faz pesca desportiva? É apenas mergulho…
– Fotos! – Respondeu João, desviando o olhar por cima do ombro do agente Rocha tentando ver melhor o que o outro polícia fazia.
– Hum… hum… – assentiu o agente. – Então e tem estado tudo calmo por aqui? Nada de estranho?
– Estranho como? – Perguntou.
– Diga-me você. – Voltou o agente, como se estivesse a insinuar alguma coisa. – Por vezes passam-se coisas estranhas no mar.
Antes de João ter tempo para responder, o outro polícia finalmente decidiu mexer-se dirigindo-se para algo pousado num canto que lhe chamou a atenção.
– O que é isto? – Perguntou, pegando no gancho que há pouco tempo tinha sido usado para recolher a bóia.
Mais uma vez, João Martins não teve tempo de responder. Um grito de alarme soou vindo do barco da polícia fazendo com que todos se virassem para o agente que ficara no barco e que agora gesticulava furiosamente apontando qualquer coisa no mar ao lado direito do Almagreira.
– Está qualquer coisa na água – gritava – a estibordo.
Os três homens olharam em simultâneo para algo flutuava por entre as ondas, algo escuro que, ora aparecia ora desaparecia.
– Está tudo bem. – Respondeu o agente Rocha, sinalizando com a mão direita para que o colega se acalmasse. – É apenas um saco de plástico.
Mas o agente de terceira classe J. Faria não era da mesma opinião. Ainda com o gancho na mão inclinou-se sobre a beirada do barco e, esticando o corpo com mais de um metro e oitenta, fez valer a força dos seus vinte e oito anos e começou a puxar o saco de plástico preto, numa tentativa de verificar se estava mesmo vazio.
– Ajude-me aqui Rocha – pediu, ao ver que o saco era mais pesado do que supunha. – Há alguma coisa lá dentro.
O balofo oficial, muito a custo lá conseguiu inclinar-se para fora o suficiente para ajudar a puxar o saco para dentro do Almagreira. Uma corda branca fechava-o hermeticamente e impedia o acesso ao seu conteúdo.
Amílcar Rocha, apesar de ainda a recuperar do esforço, soube imediatamente do que se tratava. Já não era a primeira vez que via um volume daquele género dentro de um saco preto, embora estivesse mais habituado a vê-los com um fecho de correr em vez de uma corda a fechá-los, e num local mais seco e frio… na morgue.
– Uma faca, depressa! – Gritou. – É preciso abrir o saco. Uma faca… uma tesoura… qualquer coisa.
O agente Faria compreendeu também quase imediatamente qual o motivo da excitação do seu superior. Utilizando o gancho uma vez mais, desta vez com um cuidado redobrado, começou a rasgar o saco de plástico negro pondo a descoberto a sua sinistra carga.
– Depressa – gritou Rocha novamente. – Vê se ainda está vivo.
O treino de primeiros socorros que fora obrigado a repetir consecutivamente enquanto ainda era um estagiário compensou agora o agente Faria que, numa meticulosa sequência de gestos automáticos, erguia com cuidado a nuca da criança deitada sobre o saco preto, agora já totalmente aberto como se tratasse de uma manta. Os dois dedos da mão esquerda, indicador e médio, posicionaram-se levemente sobre a artéria carótida enquanto quase encostava o ouvido à boca e nariz do miúdo tentando sentir qualquer indício de respiração.
– Não respira! – Gritou. – E a pulsação quase não se nota.
– Levanta-lhe o queixo! – Ordenou Rocha, pondo-se de joelhos ao lado da vítima, temos de tentar fazê-lo respirar.
Faria retirou o braço debaixo da nuca do miúdo e, com a mão esquerda ergueu-lhe um pouco o maxilar. Ao mesmo tempo apertou-lhe com firmeza o nariz, encheu bem os pulmões e colando os lábios à boca da vítima, soprou duas vezes. Quando sentiu os pulmões da criança cheios, ergue-se para tomar fôlego. «Doze respirações a cada minuto.» – Pensou, recordando as aulas de primeiros socorros. – «Repetir a cada cinco segundos e voltar a verificar a respiração e pulsação.» Voltou a repetir a manobra, desta vez terminando com os dedos mais uma vez sobre a carótida e o ouvido sobre o nariz a tentar captar algum vestígio de vida.
– Não sinto nada! – Gritou.
Posicionado de joelhos ao lado da criança, a memória do agente Rocha trabalhava a toda a velocidade tentando recuperar a sequência exacta do procedimento para a massagem cardíaca que sabia ter assistido numa formação há cinco anos atrás: Encontra o apêndice xifóide e conta três dedos acima, posiciona a mão com a palma para baixo e intercala os dedos com a segunda mão… «Lembro-me bem o que raio é o apêndice xifoide.» – Rosnou baixinho para com ele. – Abanou a cabeça e deixou que o instinto o guiasse. Colocou as mãos, uma sobre a outra por cima do peito da criança e, com os braços esticados, começou a fazer pressão. Uma, duas, três… contou quinze vezes e fez sinal ao agente Faria para repetir a respiração artificial.
– Não vale a pena. – Informou tristemente o agente de terceira classe. – Está morto.
Os dois entreolharam-se durante alguns segundos em silêncio quando, como se puxado pelo cordão de uma marionete, o braço do miúdo mexe-se alguns centímetros na direcção de Amílcar e a mão abre-se, exibindo um pequeno rectângulo de plástico vermelho.
«Está vivo!» – Gritaram os dois.
Mas não estava. Tentaram uma vez mais, perceber a existência de algum sinal vital mas foi em vão. Um último espasmo ou talvez devido à oscilação do barco tinha dado origem àquele esperançoso movimento. O miúdo, aparentando ter pouco mais de dez anos, jazia inerte no convés do barco com a mão direita aberta exibindo o pequeno pedaço de plástico brilhante como se, num último e desesperado gesto antes de falecer, quisesse oferecer uma jóia valiosa aos agentes que o tinham, tentado salvar.


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segunda-feira, 7 de março de 2016

A Ilha da Vergonha (014)

"(...)Já se preparava para retornar ao barco, quando a bota chuta qualquer coisa que vai embater na parede. Apontou automaticamente a luz da lanterna para o sítio onde ouviu o embate e baixou-se para examinar o pequeno objecto cinzento.
Era a bateria de um telemóvel."

Instantaneamente, soube onde estava. Estava por baixo do pátio interior do forte, mais exactamente, em abaixo da fresta onde o inspector tinha perdido o telefone, e tudo indicava que alguém ali estivera preso.
– Então? Está tudo bem aí dentro?
– Calma – ecoou a voz do sargento. – Já estou a sair. É só mais um segundo.
Pouco depois, deslizava triunfante para o bote, exibindo o troféu.
– E então? – Perguntou Lourenço, ansioso por saber como tinha corrido a exploração.
– Um cubículo mal cheiroso, – respondeu enquanto passava a máquina fotográfica para o colega. – E fosse quem fosse que ali esteve, não saiu há muito tempo. Encontrei esta bateria, que deve corresponder ao telemóvel do inspector, e ainda se notava um ligeiro cheiro a cera duma vela que encontrei no centro do compartimento.
 Lourenço corria uma a uma, as fotografias tiradas pelo sargento e ia acenando em concordância. Houve no entanto qualquer coisa que o fez voltar atrás e examinar uma das fotos com mais atenção.
– Estranho… – Disse como se tivesse a falar para consigo, enquanto analisava atentamente o pequeno ecrã.
– O que há de estranho?
– Hã?!
– T'ás hipnotizado ou quê? – Voltou o sargento, levantando a voz. – Estavas a dizer que era estranho… O que há de tão estranho nas fotos?
– Desculpa. – Respondeu um pouco atrapalhado como se estivesse acordado de um transe. – Esta foto aqui – disse, apontando com o indicador. – Não achas estranho?
– O quê? – Perguntou, arrancando-lhe a máquina das mãos. – Não vejo nada de especial.
– Não é a foto em si – respondeu o furriel. – Mas todo o conjunto. Em todas as fotos está tudo velho e degradado, mas esta aqui mostra uma vela usada em cima de uma carpete quase nova. Será que está a ocultar mais alguma coisa?
– Rais’te’parta! – Grunhiu o sargento, voltando a guardar a máquina no bolso e preparando-se para saltar de volta à gruta. – Como é que não reparei nisso antes.
– Eh! Pára! Onde pensas que vais?
– Vou voltar lá dentro.
– Espera aí… o tenente disse…
– Não quero saber… – Respondeu saltando do barco. – Temos que fazer um reconhecimento, não é? Então, tenho de confirmar se verifiquei tudo ou não.
– Hum… O.K., mas então deixa-me amarrar o barco, pois desta vez vou contigo.
– Como queiras. – Respondeu Paiva com um encolher de ombros.
Pela segunda vez, o cheiro nauseabundo da gruta atingiu o nariz do sargento que, embora já estivesse à espera, não conseguiu conter uma expressão de nojo. Apontou a lanterna para o colega que lhe retribuiu um olhar de repugnância enquanto tentava conter-se para não tapar o nariz.
– Porra – disse, abanando uma das mãos como que para afastar o odor. – Cheira mal como os cornos. Não sei como alguém podia estar aqui fechado.
Continuaram. Assim que fizeram a curva à esquerda, viram imediatamente o tapete no centro do cubículo. Realmente, assim a brilhar à luz das duas lanternas, contrastava ainda mais com o ambiente deteriorado do pequeno compartimento. A vela no centro ainda exalava um ligeiro odor a cera queimada, dissimulando um pouco o fedor a comida azeda misturada com o cheiro das fezes que reluziam no meio do bacio de ferro numa tonalidade castanho-esverdeada.
– Vamos lá examinar o tapete e dar o fora daqui o quanto antes. – Decretou Lourenço, passando à frente do camarada, dando um pontapé no prato que sustinha a vela e agarrando uma das pontas da carpete.
– Não! Espera! – Gritou Paiva.
Já não foi a tempo.
Os dois souberam imediatamente que tinham apenas umas décimas de segundo para agir. O clique inconfundível da “Boucing Betty” disparou uma injecção de adrenalina no sangue dos dois soldados fazendo o coração trabalhar três vezes mais rápido e apurando-lhes todos os reflexos ao extremo.


A mina anti-pessoal escondida numa fresta do solo rochoso tinha sido activada quando o pequeno arame, estrategicamente esticado por baixo da carpete, foi puxado pelas mãos precipitadas do furriel Lourenço. O pensamento racional deu lugar à vontade ancestral incutida nas células dos primeiros primatas de se manter vivo a todo o custo e, como se fosse planeado num efeito especial de cinema, os dois lançaram-se no ar pela estreita passagem enquanto atrás deles um cilindro de ferro fundido saltava mais de um metro do solo fazendo explodir uma carga de trinitrotolueno que disparou uma chuva de fragmentos de metal no meio de fumo, luz e um barulho ensurdecedor.
O zunido dos projecteis que procuravam atingir o corpo dos dois militares, associava-se ao eco da explosão e aos pedaços de rocha que desabavam atrás dos soldados como que tentando impedi-los de rebolar vivos para fora da gruta. Talvez juntando a sorte à habilidade e treino intensivo, os dois atingiram as águas do oceano no mesmo instante em que um pedaço de pedra do tamanho de um pequeno carro se soltava da parede de rocha destruindo o bote de borracha e, o corredor onde há momentos tinham passado, se enchia de pedregulhos e lama.
Silêncio...

Durante uns ameaçadores segundos o silêncio imperou naquele local, dando depois lugar a um zunido que se sobrepunha ao bater das ondas e ao grasnar das gaivotas. 
Mais uns segundos... 
O borbulhar de espuma branca onde o barco de borracha afundara começava a dar lugar ao azul das águas do mar e o zunido, embora ainda presente, principiava a baixar de volume. Finalmente, uma cabeça ofegante aparece à superfície, logo seguida de outra cuspindo ar misturado com água salgada por todos os orifícios.

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sexta-feira, 4 de março de 2016

A Ilha da Vergonha (013)

"Não havia dúvida. Havia alguma coisa debaixo de água."

Duas potentes remadas levaram o bote até ao canto mais escuro da gruta.
– Mantêm-no firme! Eu vou ver.
Inclinou-se para fora e, antecipando uma arrepiante água gelada, mergulhou a cabeça, mantendo-a submersa por alguns segundos. Quando voltou a emergir, aspirou rapidamente umas quantas golfadas de ar enquanto agitava com força a cabeça para expelir o excesso de água dos ouvidos.
– Então? – Perguntou o companheiro, ansioso.
– É uma argola de ferro. Não parece estar enferrujada e está a cerca de vinte centímetros de profundidade. Acho que consigo chegar-lhe, se me segurares pelo cinto.
– Para que servirá?
– Sei lá. Talvez fosse um antigo ancoradouro. – Respondeu, encolhendo os ombros. – Em todo o caso, o tenente mandou verificar tudo, e é o que pretendo fazer.
Paiva tinha servido como segundo subsargento da marinha, antes de ter concorrido para as tropas especiais. Pela sua experiência, sabia que aquilo podia ser tudo menos um ancoradouro. A maré estava baixa pelo que, aquele aro tinha sido colocado naquela posição com o intuito de permanecer escondido, mesmo numa situação de baixa-mar extrema. Ainda por cima, a ausência de ferrugem sugeria um uso constante, restava saber com que finalidade.
– Vamos lá com isso. Tenta puxar a ver o que acontece.
Seguro pelo cinto, o colega de Paiva mergulha outra vez, tentando alcançar o aro. Puxou-o sem dificuldade e este deslocou-se cerca de dez centímetros da rocha. Uma ligeira brisa acariciou os cabelos do subsargento um segundo antes de uma porta da altura de um homem miraculosamente se abrir à sua frente. O susto fê-lo largar o cinto do colega que, sem apoio deslizou para fora fazendo balançar o barco no sentido contrário, o que fez com que o desprevenido Paiva também fosse experimentar a água.
Os dois surgiram logo depois, quase em simultâneo, um de cada lado do bote. Numa situação normal, ambos já teriam iniciado um longo reportório de comentários ofensivos, tendo como alvo a mãe de cada um deles, respectivamente, mas as gargantas não conseguiram expelir um único som por tempo suficiente para que os dois se acalmassem, enquanto olhavam estupefactos a abertura na rocha em formato de porta. Como se fosse combinado, os dois saltaram ao mesmo tempo para dentro do barco e Paiva, mais rápido que o colega, galgou a abertura recentemente aberta levando a lanterna entre dentes.
– Eu vou examinar isto – disse. – Chama o tenente pelo rádio. – E desapareceu na escuridão.
O segundo furriel Lourenço conformou-se mais uma vez. Bem vistas as coisas, tinha a mesma patente que o seu colega da marinha mas, face a ele, acabava por ficar sempre em segundo plano.
«Raios! É sempre a mesma coisa.» – Resmungou entre dentes, enquanto puxava a aba de um dos bolsos unidos com velcro e retirava o auricular que ajustou cuidadosamente ao ouvido. Rodou o botão do rádio e, momentos depois transmitia a descoberta para o tenente.
«Corifeu para posto um.» – A voz do tenente entrava-lhes pelos ouvidos com uma agressividade que o obrigou a baixar o volume. – «Façam um reconhecimento e voltem à base.»
«Afirmativo! Posto um desligado.»
Guardou novamente o auricular e, manobrando o barco, aproximou-se mais da entrada por onde o colega tinha desaparecido. A lanterna iluminou o que parecia ser um corredor com cerca de três metros de comprido, fazendo em seguida uma curva em “L” para a esquerda.
– Paiva! – Gritou.
Silêncio.
– Paiva! – Voltou a chamar.
– Acho que encontramos. – Respondeu ao fim de alguns segundos, com a voz acompanhada por um ligeiro eco. – Espera um minuto, vou tirar algumas fotos. De certeza que o tenente vai querer ver isto.
Paiva encontrava-se agora numa sala escavada na rocha de uma forma quase quadrangular. Pequenos traços de luz chegavam até ele por frestas no tecto, cortando a escuridão como um raio laser, e um cheiro putrefacto, uma mistura de dejectos humanos com algas em decomposição, castigou-lhe as narinas de tal forma que a surpresa o fez suster a respiração.
A lanterna iluminava agora todos os cantos do recinto. Tinha sinais de estar habitado.


Desde a última missão que o equipamento da equipa tinha sido revisto e melhorado. Agora, incluía também uma câmara digital à prova de água com pouco mais de três milímetros de espessura. Depois de se certificar que a sala estava vazia e não o esperava nenhuma surpresa desagradável, passou a lanterna para a mão esquerda e, com a outra mão, apontou a pequena máquina fotográfica na direcção do foco de luz. Um após outro, todos os pormenores da tosca sala foram fotografados: à sua frente, uma cama de ferro com algumas lascas de tinta que teimavam ainda em prevalecer sobre a ferrugem, suportava um minúsculo colchão e dois cobertores, corroídos pelo tempo; ao lado, uma cadeira de madeira com um buraco no centro alojava um penico de ferro quase cheio e meio rolo de papel higiénico pendurado nas costas; uma mesa com pouco mais de meio metro de comprimento e duas cadeiras, tentavam equilibrar-se no pavimento irregular; sobre a mesa, um prato de barro e um talher em plástico apresentavam restos, ainda húmidos, de comida; no chão, ao centro, uma carpete brilhante, quase imaculada, contrastava com o resto da sala, albergando uma tigela de barro com uma vela quase gasta no seu interior.
Paiva olhou novamente para cima, para os pequenos fios de luz que rasgavam o tecto da sala, chegando à conclusão que serviriam como respiradouros deixando entrar ar suficiente para que uma pessoa pudesse sobreviver ali dentro, mesmo estando tudo fechado. Já se preparava para retornar ao barco, quando a bota chuta qualquer coisa que vai embater na parede. Apontou automaticamente a luz da lanterna para o sítio onde ouviu o embate e baixou-se para examinar o pequeno objecto cinzento.
Era a bateria de um telemóvel...

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