Primeiro, ainda me senti tentado a pousar por um momento a chávena de café, para escutar com mais atenção aquela voz que ia gradualmente subindo o nível dos decibéis, mas optei por tentar ignorar.
Claro que, o ênfase vai para a palavra “tentar”, pois uns segundos após ter começado, passou a ser completamente impossível deixar de ouvir o timbre esganiçado que ecoava mesmo por detrás de mim, dizendo com a língua bem afiada, mal de tudo e de todos.
Num gesto quase involuntário, vi-me a espreitar disfarçadamente sobre o ombro esquerdo, tentando perceber melhor o que se passava dentro do café, mas o sol ameno que envolvia toda a pequena esplanada, transformara a janela num grande e cristalino espelho, tornando impossível ver, fosse o que fosse, no interior do estabelecimento.
«Raios partam a velha!» – Pensei para comigo, apercebendo-me no mesmo instante que não fazia a mínima ideia da idade de quem “grasnava” tão fogosamente.
Quando o discurso começou, (e escolhi a palavra discurso em vez de conversa, porque ela não dava oportunidade a alguém de sequer tentar interromper) ainda pensei por uns instantes que iria falar sobre o seu desagrado perante os benefícios para os Chineses em Portugal, levando-me quase a esboçar um sorriso de concordância, mas… não foi necessário mais de alguns segundos, para entender que a cultura da senhora em questão era inversamente proporcional à sua fluência na dádiva da ignorância.
É que… além de parva, era estúpida!
Depois de afirmar repetidamente que não gostava de Chineses, e era incapaz de entrar numa das suas lojas sem ser acompanhada, pois tinha ouvido dizer que uma senhora entrou lá sozinha, ficando desaparecida durante bastante tempo, sendo mais tarde encontrada esquartejada, e uma fiscalização teria supostamente encontrado pedaços de carne humana no Sushi, ainda falou mais algum tempo das qualidades dos Samurais na China, da diferença dos produtos para consumo local e exportação, e da situação das crianças chinesas mais desprivilegiadas em grandes cidades, como Tóquio.
Depois, dentro da mesma sequência exemplar de cultura, inteligência e delicadeza, foi a vez de expressar a sua opinião sobre os indianos, sobre as brasileiras, sobre a raça negra, sobre os países do leste…
Irra… Raios partam a velha!
Levantei-me, lançando um olhar entristecido à chávena de café ainda meia e já fria, que eu distraidamente ainda segurava pela asa. Bebi o resto daquele líquido escuro de um só gole, sentindo um arrepio que me percorreu o corpo todo, e virei-me para a porta, com intenção de me dirigir ao balcão, pagar e desaparecer dali o mais rápido possível. Mas… de repente, silêncio… A voz tinha-se calado, sendo substituída por uma respiração ofegante.
Parei a tempo de ouvir uma voz masculina a dizer num tom calmo:
– Concordo com a tua posição!
– Só tinhas de concordar! – Replicou a mesma voz esganiçada, mas ainda ofegante. – Tudo o que eu disse…
Foi interrompida pelo mesmo homem:
– Não percebeste. Concordo com a tua actual posição em que finalmente estás calada. Só ainda não me levantei e deixei-te aqui a falar sozinha, porque seria uma vergonha ainda maior que aquela que me fazes passar com as tuas conversas parvas.
Finalmente, entrei no café.
Alguns clientes apressavam-se para pagar a despesa encostados ao balcão e, na única mesa que se mantinha ocupada, o casal ali sentado prendeu-me o olhar por alguns instantes, num misto de espanto e incredulidade.
Do lado direito, um homem já de alguma idade, de pela negra, um semblante calmo e sereno, e um bigode farto já amarelado pelo tempo, olhava de perna traçada distraidamente para as páginas do jornal. Em sua frente, a senhora que, à partida, deveria ser a esposa, mulata, de cabelos grisalhos, vestindo um “sari” que lhe envolvia o corpo como um cobertor enrugado, fulminava-o com uns olhos vermelhos, um pouco mais finos que o normal, deixando adivinhar a sua origem nipónica.
Neste momento, não tenho a certeza se pensei, ou disse em voz alta, mas…
Porra! Raios partam a velha!
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Peniche, 12 de Maio de 2015
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