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sábado, 30 de janeiro de 2016

Holocausto

arte por, Mikayel Harutyunyan
Talvez um dia…
Talvez um dia, a paz não sejam só palavras.
Palavras escritas, faladas mas… sentidas?
Sentidas apenas por quem
já passou pelos trilhos da guerra.
Passou por famílias sofridas.
Passou até pelo medo de viver,
sem liberdade para sonhar.

Talvez um dia,
essas imagens que nos fazem recordar
anos de devastação.
Milhares de almas dizimadas
em campos de concentração.
Corpos de um povo… Gente,
erradicada, gaseada, queimada,
apenas por ser diferente.
Talvez um dia, nos fale ao coração.

E… se esse dia fosse hoje?

Se hoje parássemos para pensar…
parássemos de escrever, falar,
e… se ouvíssemos a razão?
E se esquecêssemos credos, cores,
raças, sexo, religião?
Se deixássemos de tentar impingir
a nossa própria e hipócrita vontade,
quer como homens comuns,
ou donos de uma nação,
neste mundo, já tão frágil, conturbado.

Então… Talvez um dia, no futuro,
estes tempos vergonhosos de tristeza,
fossem apenas palavras do passado.

© Vicente Cândido, Peniche 29-01-2016
“Escola 2,3 D. Luis de Ataide”

(27 de Janeiro - Dia Internacional da Lembrança do Holocausto)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (008)

"Help me. I’m stock in here. Contact my father. 
Joseph Brown."
            Leu a mensagem por duas vezes, concentrando-se em seguida na esposa que o olhava, esperando uma reacção.
            – Não ligues. – Disse, calmamente. – Muito provavelmente é só alguém na brincadeira, sem mais nada para fazer, que mandou uma mensagem apenas para se divertir. Há quem não tenha nada de melhor para fazer.
            – Achas? Então olha bem para o remetente. Já viste quem enviou isso?
            Miro pressionou uma vez mais a tecla que fazia a mensagem deslizar até ao fim no ecrã do telemóvel. Onde deveria aparecer a hora e o número que a tinha enviado, piscava agora um nome, fazendo-o abrir e fechar os olhos por diversas vezes para confirmar que estava a ler correctamente.

                        Mensagem recebida em 27-07-2007 às 12.04
 Por Miro

            Leu aquelas duas linhas algumas vezes até que, finalmente, a esposa o acordou daquele momentâneo transe.
            – E então? – Perguntou, tocando-lhe ao de leve nas mãos. – O que me dizes disso?
            – O que queres que te diga? Há poucas coisas que me apanham de surpresa mas, esta foi uma delas.
            – Pode mesmo estar alguém atrapalhado, não achas?
            – Bem… uma coisa é certa: Alguém achou o meu telemóvel e, ou está a gozar comigo, ou está mesmo em apuros.
            – Foi exactamente o que pensei.
            – Vou tentar uma coisa – disse Miro de repente, digitando nove números no telefone da esposa e pressionando a tecla de chamada. Pouco depois, uma voz de senhora, calma mas decidida, falava-lhe ao ouvido.
            «Neste momento não é possível aceder ao número que marcou. Por favor, tente mais tarde.»
            – E então? – Perguntou Ofélia, ansiosa.
            – Está desligado.
            – E o que pensas fazer agora? Pode mesmo estar alguém ali preso.
            Miro manteve-se pensativo durante alguns segundos, tentando decidir a melhor maneira de agir. Só podia fazer uma coisa, mas também podia preparar os ouvidos, pois a mulher não ia gostar mesmo nada.
            – Vamos ter de voltar ao forte, mas antes tenho de fazer um telefonema.
            – Para quem?
            – Tens de compreender, amor, eu sei que te prometi passarmos estes dias juntos sem tocarmos no meu trabalho, mas esta situação é diferente. – Olhou para a esposa que, por sua vez, já estava a adivinhar onde a conversa ia parar. Como tantas vezes antes, Miro ia colocar a Policia Judiciária à frente de tudo e, mais uma vez, a esperança de passarem alguns dias só os dois, ficaria adiada.
            – Pronto, está bem. Faz o que tens a fazer. – Disse, com um misto de desilusão e compreensão. – Eu também não iria conseguir aproveitar estes dias sem me sentir um pouco culpada. Vais ligar para onde?
            – Para a central!
            
Com o telemóvel encostado ao ouvido, Miro espera pacientemente que a central automática de chamadas o transfira para um colega de serviço. Alguns segundos depois, uma voz masculina ouve-se do outro lado da linha.
«Policia judiciária. Departamento de Investigação Criminal de Leiria.»
– Fala Oldemiro Mendes, número de identificação PX714/8. Preciso que entrem em contacto com uma equipa de resgate e a enviem para a Ilha das Berlengas. Há indícios de uma criança presa na ilha, perto ou por baixo do forte São João Baptista. Possibilidade de rapto.
«Aguarde um minuto em linha, por favor.»
O telefone ficou em silêncio cerca de quarenta segundos. Se seguissem o protocolo, estariam neste momento a confirmar a sua identificação e a localizar a chamada.
Finalmente, uma outra voz fez-se ouvir do outro lado.
«Então Mendes, nem no dia de folga te esqueces de nós?»
Miro reconheceu imediatamente a voz.
– Boa tarde, chefe. – Respondeu, com alguma reverência. – Infelizmente, parece que o trabalho me persegue. Vou resumir-lhe o que aconteceu para que o chefe possa resolver a melhor acção a tomar.
Miro fez um breve relato do acontecido, deixando o chefe do Departamento da Policia Judiciária de Leiria ao corrente dos seus passos, desde que entrou no forte até à altura em que a esposa leu a mensagem. Apenas um eventual “Hum… hum…” de concordância se ouvia do outro lado.
«Qual era mesmo o nome do pai?» – Perguntou o chefe, quando Miro terminou a sua narração.
– Joseph Brown.
«Certo! Eu vou entrar em contacto com a polícia marítima e dar ordens para que uma equipa se encontre consigo na ilha. Qual é o melhor local para pousar um helicóptero?»
– Em frente ao forte, há um pátio. Encontro-me lá com a equipa de resgate dentro de…
«Trinta e cinco minutos.» – Respondeu o chefe, depois de uma pausa de dois segundos e alguns toques no teclado do computador. – «Entretanto, vou pessoalmente verificar no sistema se há notícia de alguma criança desaparecida cujo pai tenha o nome de Joseph Brown. Se houver novidades, ligo para este número e… – Fez uma pausa. – Avise a sua esposa que este telefone vai ficar sob vigilância durante algum tempo, e com a linha semi-segura. Tudo o que for dito através dele, vai passar pelo nosso sistema primeiro.
– Certo!
– Ah… – Disse, antes de desligar. – O seu também. Assim, caso haja mais alguma mensagem ou ligação através dele, ficamos imediatamente a saber.
– O.K.  – Assentiu Miro, concordando. – Se não precisa de mais nada, vou preparar-me para ir ao encontro da equipa.
– Certo! Bom trabalho! – Foram as três palavras, antes da ligação ser bruscamente cortada.
– Então? O que disseram eles? – Perguntou Ofélia, que se mantivera em silêncio até então, tentando seguir a conversa.
– Vão mandar uma equipa dentro de meia hora. Eu vou encontrar-me com eles no forte. – Respondeu, preparando-se para se levantar.
Ofélia foi mais rápida. Num salto, passou para o lado dele e segurou-lhe a mão contra a mesa impedindo-o de sair do lugar.
– Nem penses que vais sem mim! – Disse-lhe com convicção, enquanto o fitava sem piscar.

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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (007)

"Alberto mostrou-se um guia impressionante, dando à sua voz rouca um tom senhorial, enquanto ia explicando em pormenor a história da ilha, bem como o nome das grutas e das formações rochosas por onde iam passando."


Um único barco estava ancorado na pequena e tosca plataforma de embarque. Miro e Ofélia desceram cuidadosamente a meia dúzia de degraus até à beira do mar apoiando-se nas barras de ferro, já bastante degradadas, corroídas pela ferrugem e pelo embate das ondas salgadas, estrategicamente cravadas na rocha.
A plataforma, coberta por limo quase na totalidade e escorregadia, obrigou Ofélia a procurar apoio nos braços do marido, lançando um gritinho estridente ao mesmo tempo que tentava evitar que os pés se movessem contra a sua vontade.
– Tens mesmo a certeza que queres andar numa destas coisas? – Perguntou Miro, olhando desconfiado para o bote de dois metros e meio com um pequeno motor fora de borda, que subia e descia ao ritmo da ondulação.
Ofélia olhou para o marido e, em seguida, para o homem com aspecto sonolento encostado à popa do barco. A aparência rude e a pele estragada por muitos anos de convívio diário com o sol e o mar, não deixavam adivinhar a idade mas, com certeza seria mais novo do que aparentava. Devagar, como se estivesse a despertar de um longo sono, abriu os olhos, parecendo só nesse instante ter tomado conhecimento da presença do casal.
Foi uma surpresa.
Por detrás da vestimenta, carcomida por anos de uso e do aspecto abatido, um olhar sagaz e inteligente fixou Ofélia, quase a hipnotizando com um brilho azul, intenso, como se a cor da íris lhe fosse dada pelo próprio oceano. O esboço de um sorriso acompanhou um cumprimento numa voz rouca, mas com uma sonoridade limpa e agradável.
– Bons dias! Podem subir. Se querem visitar a ilha e as grutas em torno dela, a melhor maneira de o fazer é de barco.
– E isso demora quanto tempo? – Perguntou Miro, depois de receber um sinal de aprovação por parte da esposa.
– Cerca de uma hora. São três euros por pessoa e, depois posso levá-los de volta à praia do Carreiro do Mosteiro. – Fez uma pequena pausa. – A menos que lhes apeteça subir aqueles degraus. – Disse, apontando sugestivamente para a escadaria de pedra que o casal tinha descido há pouco mais de meia hora. – É a única alternativa. – Reforçou.
– Não precisa dizer mais nada – apressou-se Ofélia a responder. – Qualquer coisa menos fazer outra vez aquele percurso todo de volta. Vamos lá então senhor…
– Alberto! Alberto Pereira. Tenham cuidado a entrar que a beira da rocha está escorregadia.
– Muito prazer. O meu nome é Ofélia e este é o meu marido, Oldemiro.
– Miro! – Corrigiu Miro rapidamente, estendendo a mão.
O homem sinalizou afirmativamente e, assim que os dois se instalaram numa das travessas em fibra que ligavam os lados do barco servindo de bancos, ligou o motor e arrancou passando por cima de uma pequena onda que logo se rebentou contra a rocha por trás deles.
A apreensão inicial esfumou-se rapidamente à medida que avançavam sobre o mar calmo e apreciavam aquela paisagem paradisíaca. Alberto mostrou-se um guia impressionante, dando à sua voz rouca um tom senhorial, enquanto ia explicando em pormenor a história da ilha, bem como o nome das grutas e das formações rochosas por onde iam passando.
– Olha ali aquela! – Observava Ofélia. – Parece uma baleia. E aquela… parece a cabeça de um elefante.
Quase sem darem por isso, tinha passado uma hora e meia e já estavam de volta à praia. Agradeceram ao guia, que ainda recebeu alguns trocados de gorjeta, e decidiram que era melhor comerem qualquer coisa para depois empregarem o tempo restante a aproveitar o sol e a pequena praia.
Subiram até ao restaurante e, depois de alguma hesitação sobre o que iriam almoçar, acabaram por pedir uma dourada escalada com legumes pescada nas águas da ilha, como lhe garantiu o empregado de mesa.
– Só tenho pena de uma coisa – disse Miro, enquanto tentava cortar um queijo fresco em seis partes milimetricamente idênticas. – De ter perdido o telemóvel. Podíamos ter tirado mais algumas fotos, sem contar com aquelas que já tínhamos antes de chegar ao forte e que ficaram irremediavelmente perdidas. Os números gravados, posso recuperá-los facilmente, tinha-os no computador. Mas as fotos…
– Vá… não penses mais nisso e vamos aproveitar o resto do dia. – Insistiu Ofélia.
O resto da refeição prosseguiu alegremente, enquanto iam falando do passeio de barco e do enorme conhecimento do senhor Alberto sobre a história da ilha.
No final do almoço, o empregado trouxe dois cafés enquanto, disfarçadamente mas certificando-se que o seu gesto não passava despercebido, deixava também sobre a mesa um pratinho com um pedaço de papel.
– Pois… a conta nem é preciso pedir. – Comentou Miro, pegando no pedaço de folha escrita à mão e olhando para a última fileira de números. Largou-a no mesmo instante soltando um ligeiro gemido como se esta o tivesse mordido na ponta dos dedos. – Toma! Ofereço-te! – Disse, empurrando o prato na direcção da esposa.
– Então? Isso não é de cavalheiro. – Respondeu Ofélia, sorrindo ao mesmo tempo que pegava na bolsa e procurava a carteira.
De repente, Miro vê-a pegar no telemóvel, ficando muito séria a olhar para o visor enquanto, com o polegar, pressionava algumas vezes uma das teclas. Os olhos iam-se abrindo cada vez mais à medida que relia o texto em sua frente.
– O que se passa? Alguma mensagem?
Ofélia não respondeu, recusando-se a desviar os olhos do visor.
– Então? O que foi? – Insistiu Miro.
– Tens a certeza que perdeste o teu telemóvel. – Perguntou Ofélia, finalmente.
– O telemóvel?
– Sim, o telemóvel. Perdeste-o mesmo ou tens estado a brincar comigo?
– Claro que o perdi. Mas porquê isso agora?
Ofélia colocou o seu telefone em cima da mesa, bem em frente do marido, com o ecrã voltado para cima, onde se via uma mensagem iluminada por uma ténue luz azulada.
– Lê isto! – Ordenou.
– Mas, o que…
– Cala-te e lê! – Insistiu.
Miro reparou no nervosismo da esposa e achou melhor fazer o que ela lhe pedia. Pegou no telemóvel de Ofélia e começou a ler, pausadamente e em voz alta, a mensagem em inglês que lhe parecia piscar em frente dos olhos.

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Joseph Brown.

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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (006)

"– Mas… o que aconteceu?
 – Aconteceu… aconteceu que eu ia tirar-te uma foto e o raio do telefone caiu-me neste maldito buraco que parece não ter fim."


– Deixa-me ver isso. – Pediu Ofélia, ajudando o marido a retirar o braço e, por sua vez, colocando o dela, obtendo os mesmos resultados.
– Então?
– Nada! Será que isto tem mais algum piso aqui em baixo? Pareceu-me sentir uma corrente de ar vinda da fenda.
– Penso que não – respondeu Miro. – Pelo menos o fulano da recepção não disse nada quando nos falou dos quartos. Se fosse o cas… – Parou de falar de repente, encostando o ouvido à ranhura no chão.
– O que foi? Calaste-te de repente.
– Chiu!
– Estavas a falar do…
– Chiu! – Insistiu Miro, fazendo um elucidativo gesto com a mão para que a mulher permanecesse em silêncio. Ofélia, embora intrigada optou por esperar e, poucos segundos depois, o marido desistia e voltava-se para ela.
– O que foi? – Perguntou novamente.
– Pareceu-me ter ouvido algo… um gemido. Mas se calhar foi apenas o barulho das ondas. O forte deve ter sido construído aproveitando as rochas como fundações. Muito provavelmente, esta fenda só termina no fundo do mar.
– Vá… não sejas pessimista – confortou Ofélia, não cedendo à tentação de encostar também o ouvido à ranhura. – Não oiço nada. Deve ter sido impressão tua. Vamos… anda falar com o tipo do balcão e perguntar se o forte tem subterrâneos.
– Certo. Vamos lá então, mas cheira-me que posso dizer adeus ao telemóvel.
  
O sombrio hall de entrada ficava a poucos passos do local onde Miro perdera o telefone.
A sala de recepção resumia-se a um cubículo sem janelas com pouco mais de dez metros quadrados. Os móveis em mogno e pau-santo, de uma cor quase preta, tornavam o ambiente bastante pesado, e a decoração também não ajudava: Uma pesada estante repleta de livros velhos e bolorentos; duas cadeiras negras forradas com veludo roxo em frente de uma secretária antiga igualmente negra; uma mesinha de chá coberta com revistas e panfletos; alguns quadros com grandes molduras douradas representando soldados do século XVIII e um lustre que mais parecia a roda de uma carroça com lâmpadas em forma de vela.
Por detrás da secretária, iluminado pela luz fraca de um pequeno candeeiro, uma figura caricata com uns minúsculos óculos ovais enterrados na ponta do nariz, olhava o casal parado à porta.

foto: Early Office Museum
– Posso ajudá-los? – Perguntou, sem se levantar, com uma voz firme mas exageradamente baixa, como se estivesse numa biblioteca.
Na placa triangular com letras brancas gravadas num fundo azul, estrategicamente colocada em cima da mesa, podia ler-se “Benzino Ferreira”. Ofélia e Miro sorriram um para o outro. Nem eles conseguiriam encontrar um nome mais apropriado para o personagem à sua frente. Já bastante calvo, franzino, trajando um fato cinzento-escuro com umas riscas grossas, uma camisa branca e um laço vermelho com bolinhas brancas preso no pescoço e com aqueles óculinhos enterrados no nariz que lhe davam um ar de bibliotecário, parecia mesmo um Benzino.
– Dá-me licença? – Apressou-se Miro a perguntar. Entrou antes de lhe ser dado permissão, tentando disfarçar o sorriso.
– Façam favor, senhores…
– Oldemiro. Oldemiro e Ofélia Mendes.
– Então, em que posso ajudá-los? – Perguntou, já depois do casal se encontrar sentado em sua frente.
– Bem, senhor… Benzino? – Começou Miro, fazendo uma pequena pausa antes de pronunciar a última palavra, ainda com algumas dúvidas se seria mesmo esse o nome do homem em sua frente.
– Benzino Ferreira. – Completou o homem, mantendo um ar sério. – Não se sintam acanhados. Já estou habituado a que perguntem o meu nome duas vezes, esse foi o principal motivo que me levou a escrevê-lo.
– Pois… – Pronunciaram os dois em uníssono.
– Mas, embora não goste muito dele, já me habituei e, depois de saber a história que levou o meu Pai a chamar-me Benzino, dou-me por feliz por ter este nome.
– Ah, sim?
– Bem… O meu padrinho, que era dono de uma loja de materiais de pintura e queria que o padre me baptizasse Terbentino, mas o meu pai não deixou. Ora, a alternativa que agradou aos dois na altura, foi Benzino. Portanto… Do mal, o menos. – Parou de falar, enquanto o atónito casal se entreolhava.
«Se me tivessem atribuído um nome desses, quando completasse os dezoito anos tinha corrido para o primeiro balcão do registo civil que me aparecesse à frente.» – Pensaram os dois.
– E quanto ao assunto que os trouxe aqui? – Perguntou Benzino, mudando o rumo à conversa.
– Pois… – Voltou Miro a pegar na palavra, acomodando-se melhor na cadeira. – Gostava de saber uma coisa há cerca do forte. Por acaso esta construção não tem subterrâneos ou catacumbas ou algo do género, tem?
– Subterrâneos? – Perguntou Benzino, mostrando indiferença, mas notando-se uma ligeira modificação no olhar.
– Subterrâneos… cave… enfim, alguma construção por baixo do solo que não venha no catálogo para turistas.
– E, por que pergunta?
– Bem… Foi uma coisa estúpida que me aconteceu. Eu estava a tentar fotografar a minha mulher com o telemóvel, e ele caiu-me numa fenda no chão. Tentei apanhá-lo mas, o meu braço não conseguiu encontrar o fundo, daí eu pensar que, se existisse uma cave, talvez fosse possível recuperá-lo.
– Hum… estou a ver. – As sobrancelhas levemente arqueadas, voltaram á sua posição inicial enquanto respondia. – Lamento dizer-lhe que esta estrutura foi erguida directamente por cima das rochas e, salvo a existência de alguma gruta escavada pela erosão, debaixo deste chão, – deu umas pancadinhas significativas com o sapato, como que para realçar o que ia dizer – Só há pedra sólida. Se me pedir a opinião, pode pensar em comprar outro telemóvel.
– Bem… então não há mais nada a fazer. – Disse Ofélia, falando pela primeira vez enquanto tocava ao de leve no braço do marido, numa intenção clara de sair dali.
– Sim. Eu confesso que ainda estava com esperança, mas sendo assim, – levantou-se. – Não lhe vou tomar mais o seu tempo. Muito obrigado senhor Terbentino.
– Benzino! – Rectificou rapidamente Ofélia, reparando na postura tensa com que o recepcionista ficou.
– Claro… uh… Benzino. – Gaguejou Miro. – Desculpe-me. A conversa sobre o seu padrinho atrapalhou-me. Não leve a mal e, mais uma vez, muito obrigado.
Saíram os dois em passo acelerado e, assim que se viram novamente no pátio exterior, deram largas ao riso que estavam a aguentar desde a despedida.
Dois minutos depois de uma sonora e contagiante gargalhada que lhes levou as lágrimas aos olhos, conseguiram finalmente parar.
– “Obrigado senhor Terbentino.” – Repetiu Ofélia, imitando o marido.
– Pára! Já chega. As pessoas estão a olhar. – Implorou Miro, enxugando as lágrimas.
– Está bem. Está bem. Já te passou mais a neura com o telemóvel e podemos continuar a visita à ilha?
– Certo. Vamos lá. Aqui também já vimos tudo o que havia para ver.

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sábado, 16 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (005)

"Pararam apenas uma única vez para captarem com a câmara fotográfica e com o telemóvel algumas imagens do forte e, em menos de meia hora já estavam em terreno plano preparando-se para atravessar a ponte de rocha que dava acesso ao edifício."


Ofélia fez sinal para pararem. A respiração ofegante provinha mais do esforço mental para não sucumbir a vertigem da descida do que ao cansaço físico.
– Queres saber quantos degraus descemos? – Perguntou.
Miro já conhecia bem demais as capacidades de cálculo mental da esposa. Retraiu um comentário sarcástico enquanto colocava a mão em pala por cima das sobrancelhas para se proteger da luz solar e olhava para o percurso que acabara de fazer tentando calcular os degraus desde o sítio onde estavam até ao farol. Uma leve brisa refrescou-o por uns momentos, deixando quase imediatamente de se fazer sentir.
– Não faço a mínima ideia de quantos foram – acabou por admitir. – Mas não tenho vontade nenhuma de voltar atrás para contá-los.
– 265! 265 degraus sem contar com a rampa. – Disse usando aquele tom de voz característico de quem tinha razão e “eu bem te avisei”. – Sabes o que são 265 degraus? É a mesma coisa que desceres de um décimo oitavo andar com o elevador avariado. Nem penses que vou subir isto tudo. Nem que tenha de ir a nado.
– Não precisas nadar. Basta atravessar a ponte para irmos visitar o forte e depois vamos num desses barquitos até à praia principal. – Disse Miro, apontando para os pequenos barcos que estavam atracados junto ao forte, na esperança de conseguirem alguns turistas que os contratassem para visitarem as inúmeras grutas existentes em torno da ilha.
Ofélia pareceu acalmar ao reparar nas simpáticas embarcações que iam chegando e saindo, cada uma delas levando três ou quatro passageiros.
– O.K.  – Disse, preparando-se para atravessar a estreita ponte de rocha que ligava a abrupta escarpa ao forte S. João Baptista, passando por cima de uma pequena praia desolada, com apenas alguns poucos metros quadrados de areia. – Mas vamos despachar-nos, então. Vamos aproveitar para conhecer as grutas e ainda quero ter tempo para passar algum tempo naquela adorável praia que vimos quando chegámos.
  
O pequeno forte erguia-se altivo em frente ao casal e a mais alguns turistas que se passeavam calmamente no pátio exterior.
O pátio terminava numa enorme porta de madeira reforçada com grossas ligas de ferro fundido. Espreitando sobre o muro no lado esquerdo do pátio, uns degraus pequenos e toscos desciam até ao nível do mar, terminando numa plataforma parcialmente molhada onde duas lanchas se encontravam ancoradas. Depois de confirmarem ser esse o único acesso às caricatas embarcações que faziam o percurso em volta da ilha, entraram. Passaram um pequeno hall onde se podia ver um corredor estreito e sombrio que, provavelmente, daria acesso aos quartos onde outrora funcionavam as dependências de serviço das tropas ali estabelecidas, mas que agora eram explorados pela Associação dos Amigos das Berlengas, que tinha transformado aquele local numa tranquila e rústica pousada.
Em pouco mais de dez minutos já tinham completado a visita.
Para além dos doze quartos e de mais outras oito divisões no interior da muralha, a pequena edificação contava ainda com um café, um humilde estabelecimento mesmo no centro do pátio interior, que destoava do chão em pedra, com grandes fissuras que inspiravam cuidado ao caminhar, principalmente se fosse o caso de alguma senhora que se aventurasse a explorar aquele local em saltos altos. As espessas paredes de pedra, a precisarem urgentemente de recuperação, em conjunto com tudo o resto, e o facto do forte se encontrar directamente por cima do mar, criavam uma orla de misticismo que não passava despercebida a nenhum visitante.
– Não gostavas de viver naqueles tempos? – Perguntou Ofélia sorrindo e fazendo uma vénia curvando ligeiramente as pernas enquanto segurava uma hipotética saia comprida. – Eu seria a donzela presa na torre, e tu o meu devotado cavaleiro que atravessava o oceano no seu imponente garanhão branco, para me salvar das garras da terrível e malvada bruxa.
Miro não conseguiu suster uma sonora gargalhada.
– Com que então atravessava o oceano, montando um cavalo branco… – Olhou para a mulher durante alguns instantes, arqueando a sobrancelha com ar de quem duvidava.
Ofélia conseguiu manter-se séria durante dois segundos, explodindo depois numa contagiosa risada que a desequilibrou ao ponto de Miro ter de a segurar. Uma décima de segundo mais tarde e ela estaria estatelada no chão.
Ofélia deixou-se cair pesadamente nos seus braços tentando diminuir o riso e olhando-o nos olhos.
– Meu príncipe! – Exclamou, levantando-se logo de seguida e saltando para a beirada de uma grande janela aberta na muralha, virando-se para o mar e abrindo os braços.
– Solta as tuas tranças, Rapunzel, que eu subo por elas e salvo-te. – Gritou Miro, divertido, enquanto procurava o telemóvel no bolso, preparando-se para tirar uma foto da cena.
A pressa fez com que o aparelho lhe saltasse das mãos. Miro lançou-se num voo rasante, na tentativa de evitar que o telemóvel se desfizesse em mil bocados no chão. Ainda lhe conseguiu tocar com as pontas dos dedos, o que só serviu para aumentar o desespero ao ver o seu precioso telefone, carregadinho com fotos e com a agenda repleta de contactos, desaparecer numa grande ranhura entre as pedras do pavimento.
– Miro! – Gritou Ofélia, descendo da sua torre improvisada e correndo para o marido. – O que se passa?
Miro limitou-se a resmungar qualquer coisa imperceptível, enquanto tacteava o interior do buraco.
– Miro… – Insistiu. – Respondes-me? O que se passa?
Em vão, Oldemiro Mendes tentava chegar ao telemóvel mas, já com todo o braço inserido na fenda e sem conseguir encontrar o fundo, viu-se obrigado a desistir.
– A porcaria do telemóvel – respondeu finalmente. – Já é o segundo em menos de três meses.
– Mas… o que aconteceu?
– Aconteceu… aconteceu que eu ia tirar-te uma foto e o raio do telefone caiu-me neste maldito buraco que parece não ter fim.

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para quem quiser acompanhar:
A Ilha da Vergonha - 004
A Ilha da Vergonha - 003

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (004)

A pequena aldeia com apenas duas ruas – a “rua do Pirotas” e a “rua José Caldinhas” – e umas escassas quinze ou dezasseis casas, era visitada alegremente pelos turistas mais adiantados que admiravam com curiosidade as cerca de uma dúzia de famílias que habitavam a ilha.

O casal parou um pouco antes de entrar no bairro, num pequeno miradouro que se erguia directamente sobre a praia servindo também como esplanada do restaurante que, num quadro preto rabiscado a giz com umas letras demasiado folclóricas, exibia um apelativo Menu onde se salientavam os peixes pescados nas águas da ilha.

foto: António Lisardo
            – Já viste bem aquela praia? – Perguntou Ofélia debruçando-se sobre a murada. – Estou desejosa de ir dar um mergulho e imaginar que estou contigo num paraíso tropical.
Miro observou novamente a pequena baía. Realmente, as águas calmas e as escarpas com uns toques de verde aqui e ali, faziam lembrar uma praia dos trópicos.
Olhou para o relógio que marcava onze e meia da manhã.
            – Mais logo. – Respondeu com um ar de quem não estava minimamente interessado em se molhar. – Ainda é cedo para almoçar, vamos conhecer a ilha?
Ofélia olhou pesarosa para a estreita e íngreme trilha que parecia não ter fim e lançou um olhar, como que de despedida, à sedutora praia.
– Bom, acho que foi para isso que nós viemos, não foi? – Olhou para o marido numa ténue esperança que ele mudasse de ideias, mas Miro limitou-se a sorrir. Gentilmente, passou o braço por baixo do dela para a incentivar e começou a subida.

O sol brilhava cada vez mais forte.
Ofélia mudava de ideias constantemente, ora queixando-se da interminável subida, ora incentivando o marido para que fosse mais rápido pois queria ver o farol e estavam a perder tempo com as gaivotas. Uma breve paragem junto das plataformas preparadas para comportar algumas tendas de campismo, serviu para recuperarem as forças e apreciarem a vista sobre a praia e sobre o mar.
De volta ao percurso, uma gaivota lança-se sobre eles ameaçadoramente tentando proteger o filhote que se escondia timidamente na beira do caminho. A dedicação da mãe não resultou. No meio de gargalhadas, gritos e tentativas para se desviarem das insistentes investidas, Miro não desistiu enquanto não conseguiu tirar duas ou três fotos com o telemóvel ao assustado pinto.

foto: António M. R. Rosado
Finalmente chegaram ao cimo.
Ofélia parou olhando para trás, ofegante.
– Para a próxima fico na praia. – Desabafou enquanto tentava recuperar o fôlego. – Afinal nós viemos aqui para fazer exercício ou para descansar? Aquela areia branquinha e aquelas águas transparentes a chamar por mim, e eu aqui a brincar aos alpinistas.
– Sim… pronto… tens razão. Mas se tivesses ficado na praia, não podias visitar o farol. Sabes que foi construído em 1941 e que foi baptizado com o nome de “Duque de Bragança”? – Ofélia pareceu descontrair um pouco esboçando um sorriso e um aceno de concordância. – Então e esta vista. Já olhaste bem? Aposto que se consegue ver o horizonte a mais de quarenta quilómetros.
Realmente a vista era espectacular.
Com o farol nas suas costas, qual guardião de um gigante adormecido, o céu límpido com apenas uns flocos de nuvem aqui e além, e aquele mar que alternava entre tons de um azul carregado e um verde claro, Ofélia foi obrigada a concordar que a subida valera a pena.
Manteve esse pensamento uns segundos apenas. Vinda não se sabe de onde, uma gaivota rasou-lhe os cabelos deixando cair na blusa os restos de um jantar de peixe mal digerido.
Miro não pode conter uma forte gargalhada.
– Achas que tem piada? – Gritou Ofélia furiosa enquanto procurava desesperadamente um lenço de papel na bolsa. – Estás a rir porque não te disse quanto custou esta camisa. De certeza não achavas tanta graça. Mas porque é que não dão cabo destas gaivotas de uma vez por todas e deixam só os coelhos? Transformavam esta ilha num paraíso num piscar de olhos.
Miro cada vez ria mais ao ver o desespero com que a mulher tentava eliminar os vestígios dos dejectos da gaivota.
– Pronto. Não ligues. – Disse enquanto se esforçava para parar de rir e tentava acalmar a esposa. – Esquece as gaivotas e vamos ver o farol, O.K?
Mas era mais fácil dizer do que fazer. Mal tinha acabado a frase quando sente o impacto de outro projéctil a escassos centímetros do sitio onde estava. Decidiram esquecer a visita ao farol, que para mais tinha um cartaz a avisar que no momento não estava aberto aos visitantes, e sair dali o mais depressa possível.
Um pouco mais à frente, uma placa indicava o percurso até ao forte São João Baptista.
Ofélia olhou para baixo sentindo uma ligeira vertigem. Uma enorme escadaria com os degraus, ora em pedra ora escavados na rocha, descia quase na perpendicular num declive assustador até ao nível do mar.
Miro passou o braço por cima do ombro da esposa dando-lhe um beijo na testa, seguido de uma leve pancadinha nas nádegas como incentivo para começarem a descida. Ela sorriu, agradecendo em silêncio a malandrice da carícia e, agarrada ao braço do marido, começou a descida. Pararam apenas uma única vez para captarem com a câmara fotográfica e com o telemóvel algumas imagens do forte e, em menos de meia hora já estavam em terreno plano preparando-se para atravessar a ponte de rocha que dava acesso ao edifício.

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para quem quiser acompanhar:
A Ilha da Vergonha - 003

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

"Corre... Maria..!"

foto: "Daniel Ridgway Knight"

Corre, Maria… Corre!
Corre do dia-a-dia
e da azafama do lar.
Corre do peso nos ombros
que te fazem suportar
o pai, a mãe, os filhos
e, marido sem trabalhar.

Corre, Maria… Corre!
Corre do despertador
e, salta para a cozinha!
Põe a chaleira ao lume,
não esquecendo a torradinha
e o lanche dos miúdos.
Deixa o remédio dos pais
ajeitado na caixinha.
Assinala no jornal
os empregos p’ró marido.
Não esqueças passar o fato
e, deixa de molho o vestido.

Corre, Maria… Corre!
Leva os filhos à escola
no caminho do trabalho
que trazes por entre o dia,
engolindo entre sorrisos
esse anseio de alegria
e gritando com voz muda:
“Isto não é vida, porra!”

Corre, Maria… Corre!
Corre para o teu quente lar.
Calor, que tens tu de dar
mais esse apoio preciso
a quem te vê um pilar
de força e sensatez,
que ainda mantém unida
essa família tão querida,
antes que quebre de vez.

Corre, Maria… Corre!
Corre até não puderes mais!
Berram filhos. Choram pais.
Esconde a vergonha o marido
por ‘inda não ter conseguido
voltar ao normal da vida
e, não penses em parar…
Corre a fazer o jantar!

Corre, Maria… Corre!
Com vontade de chorar
mas, não deixes de sorrir.
Corre, até a dormir
e, dorme, Maria… Dorme!
Descansa com rapidez.
Encontra a paz nos sonhos
mas, não deixes de sonhar,
pois sabes que amanhã
tens de correr outra vez!

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© H. Vicente Cândido
Peniche, 14-07-2015
(Snack-Bar “Cruzeiro do Sul”)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (003)

(Alguns anos mais tarde...)

            Vinte e sete de Julho do ano de dois mil e sete.

            O “Cavaleiro das Ondas” cortava a ondulação que se fazia sentir ao largo do cabo carvoeiro a um ritmo alucinante. O pequeno barco de passageiros suportava o embate das ondas com a experiência de anos e anos de idas e voltas à Ilha das Berlengas mas, o enorme barulho que fazia ao cavalgar as vagas, obrigava o coração dos onze passageiros acelerar ao mesmo tempo que o pensamento comum era:
«Foi desta que a quilha partiu.»
            Mas não partia.


Vinte e cinco minutos depois de sair do cais de embarque, chegava são e salvo às águas calmas da ilha e atracava junto à praia do Carreiro do Mosteiro onde os turistas podiam desembarcar e, finalmente respirar de alívio.
A penúltima passageira saltou para terra apoiada pelas mãos do marido que, na tentativa de a amparar, quase se desequilibrou escorregando no pavimento molhado do barco. Por muito pouco não foram os dois parar à água.
– Miro… – Gritou a mulher, já em cima da murada.
– Não foi nada, só escorreguei. – Pôs-se em pé com um salto acrobático e, em segundos estava também ele fora do barco e já junto da esposa. – Pronto, já cá estou. Não penses que te deixo viúva com um escorregão.
– Nem brinques. Não basta o que eu passo todos os dias devido ao teu trabalho, fico com o coração nas mãos cada vez que oiço as notícias.
– Pronto – replicou o homem escarrapachando um beijo na face da esposa. – Não falemos do meu trabalho. Finalmente tenho uns dias de férias, vamos tratar de aproveitá-los.
– Escuta, amor… – A voz dela tomou um tom adocicado enquanto lhe colocava os braços em volta do pescoço. – Acerca do teu trabalho, não achas que já é tempo de…
Um dedo decidido colocado meigamente sobre os seus lábios impediu-a de continuar.
– Já falámos sobre isso. Ainda me faltam alguns anos e depois tenho a reforma por completo. – Retirou o dedo e retribuiu-lhe o abraço. – Vamos esquecer o trabalho e aproveitamos as férias, O.K?
Ela anuiu. Afinal, já há quatro anos que o marido não tinha uns dias de folga. Era tempo de aproveitar e não de discutir.
– Vamos ver a ilha? – Perguntou ela para mudar de conversa.
– Vamos!
Oldemiro Mendes detestava o seu nome. A tradição incutira-lhe a decisão do padrinho de baptismo e, agora não havia mais nada a fazer. Mendes no trabalho, Miro entre familiares e amigos mas, Oldemiro… só a mulher o chamava assim e apenas quando o queria atazanar. Casados há dezoito anos, só depois do casamento tinham descoberto que não podiam ter filhos mas isso apenas servira para os unir ainda mais e, apenas esse amor e cumplicidade lhes permitira ultrapassar os obstáculos que o trabalho de Miro na Policia Judiciária impunha na sua vida familiar.
Já com o barco em movimento, o comandante da embarcação forçando a voz rouca e gasta, característica de quem passou anos a ser açoitado pela aragem salgada do mar, lembrou aos passageiros que ainda o conseguiram escutar a hora de regresso ao continente. Quatro da tarde em ponto. Poucos minutos depois, saía do abrigo das águas calmas que envolviam a ilha e avançava em direcção ao porto de Peniche.
Um puxão mais forte na bolsa que trazia a tiracolo, obriga Miro a desviar o olhar do horizonte. Ao seu lado, os cabelos negros da mulher ondulavam ao sabor da brisa, escondendo por vezes os seus luzidios olhos negros que tanto o atraíam e que agora o interrogavam por cima de um indecifrável e quase místico sorriso.
Ofélia era uma mulher de aparência cuidada e um corpo que, aos quarenta e dois anos, fazia inveja a muitas com metade da sua idade, o que sempre desviara a atenção dos homens para as suas belas formas, mantendo disfarçada a sua excepcional inteligência. Tinham-se conhecido ainda em miúdos, quando a ordem alfabética dos seus nomes os obrigara a sentarem-se lado a lado. Seguiram depois áreas diferentes mas, aqueles olhos negros, brilhantes e misteriosos, ficaram sempre gravados na memoria de Miro, tanto que, quando mais tarde se voltaram a reencontrar, a amizade de criança transformou-se imediatamente num sentimento mais forte para o qual ambos não estavam preparados.
Dois meses mais tarde, saíam da igreja cobertos de arroz entre gritos de alegria e votos de felicidade.

Miro, olhou para os outros visitantes da ilha que iam desaparecendo pelas escadas íngremes que levavam à aldeia pesqueira e voltou-se novamente para a mulher que aguardava ansiosa pelo início do passeio. Inesperada e impetuosamente, pega-a pela cintura e ergue-a no ar tão facilmente como se de uma pluma se tratasse, apanhando-a completamente desprevenida.
– O que é isso agora? – Gritou ela enquanto esperneava para se libertar e ria à gargalhada.
Um prolongado e fogoso beijo acabou imediatamente com a vontade de sair dos braços do marido. Já com os pés na plataforma mas ainda encostada ao peito de Miro, teve então a sua resposta:
– Amo-te! Amo-te tanto agora como no dia do nosso casamento.
Ela não respondeu, limitando-se a abraçá-lo ainda com mais força ficando os dois assim, agarradinhos com os olhos fechados a ouvir apenas as gaivotas e o murmúrio do mar. Sorriram ao abrir os olhos em simultâneo e, finalmente começaram a subir até ao bairro dos pescadores, deixando para trás a plataforma de embarque e a estreita praia de água translúcida.

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sábado, 9 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (002)

"(…) uma criança; um miúdo que parecia não ter mais de oito anos? Era a última coisa com que esperavam deparar-se naquele sítio."

           – Tem calma. Está tudo bem agora, ninguém te vai fazer mal. Como te chamas?
            O rapaz encolheu-se um pouco mais ao ver a figura enorme do soldado avançar para ele. Segurava a perna ferida com força mas, a sua expressão era agora mais de receio do que de dor. Pais encostou a G3 a um canto e aproximou-se cuidadosamente.
            – Não tenhas medo. Deixa-me ver essa tua ferida. – O rapaz permitiu que o soldado lhe afastasse as mãos e examinasse o corte feito pela baioneta. Não era muito profundo, nada que um penso rápido não resolvesse. – É melhor chamarmos alguém e avisar o que encontramos.
           – Eu vou. – Prontificou-se o soldado Fernandes. – É melhor chamar um médico também.
            O eco das passadas rápidas do soldado logo desapareceram nos compridos corredores do forte-prisão e a atenção de Pais voltou-se novamente para o miúdo que permanecia no chão sem pronunciar um único som.
           – Pronto. O meu colega já foi buscar alguém para cuidar de ti. Não me queres dizer o teu nome? Eu chamo-me Zé.
            O tom calmo da voz do soldado pareceu produzir algum efeito no rapaz que, pouco a pouco, foi perdendo o olhar de terror sendo este substituído por uns olhos azuis, cristalinos, que olhavam o soldado José Fernandes interrogativamente. Finalmente, balbuciou alguma coisa imperceptível.
            – Desculpa, não ouvi. Estavas a dizer que o teu nome era…
            – João! – Disse o rapaz com a voz ainda trémula. – Mas aqui todos me chamam apenas miúdo.
            – E tu? Como preferes que te chamem?
            O rapaz encolheu os ombros e sentou-se, já mais à vontade.
            – Tanto faz. – Respondeu. – Onde estão as outras pessoas? Foram-se embora?
            – Foram. E tu, porque estás aqui?
            – Eu? Eu vivo aqui. – Respondeu o rapaz pondo-se em pé com um ar de importância. – Cuido dos homens que cá estão, ajudo-os a fazerem as suas tarefas, a lavarem-se, e mais coisas. Em troca, posso comer e dormir com eles.
            O soldado Pais não queria acreditar no que estava a ouvir. Sem dizer uma palavra começou a examinar pormenorizadamente o rapazinho que tinha à sua frente. Parecia cuidado, sem vestígios de maus-tratos. Os grandes e brilhantes olhos azuis enquadravam-se perfeitamente na sua cabeleira loura e, a pele clara dos braços que saíam por baixo da camisa cinzenta com as mangas arregaçadas, mostrava apenas algumas cicatrizes antigas, já de alguns anos atrás.
            – Diz-me uma coisa… que idade tens?
            – Eu? Nove anos, mas já faço o trabalho de um homem.
            – E… onde moravas antes de vir para aqui? Quem eram os teus pais?
            O rapaz perdeu por momentos o seu ar autoritário, sentindo-se desfalecer e sentando-se ao lado do soldado que se encontrava agachado a olhá-lo.
            – Não sei. Não me lembro de nada antes de vir para aqui. Uma vez perguntei a um senhor que sempre me tratou muito bem como eu tinha vindo para cá mas ele também não me soube dizer, ou não quis falar nisso pois disse-me que, se eu quisesse continuar a ser bem tratado por todos, era melhor parar de fazer perguntas.
            – E tu?
            – Eu? Parei de fazer perguntas.

            Pais colocou a sua mão sobre a cabeça do rapaz compreensivo. Também ele tinha perdido os pais quando era ainda um miúdo e fora criado pelos avós maternos. Fora obrigado a trabalhar desde muito cedo e viu no exército um escape para a pacata e trabalhosa vida na aldeia do Sobral da Lagoa, com as suas mais de trinta eiras, quase uma por cada casa, e jeiras de terrenos a perder de vista.
            Os seus pensamentos foram interrompidos pelo companheiro que retornava, seguido por mais dois homens fardados e uma mulher que, pela vestimenta, aparentava ser enfermeira. Em poucos instantes, após um rápido exame e algumas perguntas, o rapaz foi levado pelos dois homens e, dez minutos depois, eram os dois soldados que terminavam a busca às duas celas restantes e, também eles abandonavam o forte de Peniche.
            Os dois foram elucidados sobre a necessidade de manter este episódio em segredo e, após terem assinado um documento que os obrigava a manter o silêncio pelo menos durante dez anos, receberam um prémio em dinheiro e uma semana de licença para que pudessem descansar do trabalho ininterrupto que tinham já há mais de uma semana.

            Anos mais tarde, após um encontro onde a conversa voou para as recordações do tempo de tropa, lembraram-se de tentar saber que rumo tinha levado o rapaz mas, a única informação que conseguiram foi que este tinha sido colocado num orfanato e que tinha fugido com a idade de treze anos, sendo agora o seu paradeiro incerto.

(Fim do Prólogo)

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A Ilha da Vergonha - 001

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (001)

E... porque não iniciar um livro por aqui? Ou talvez dois...

Mais uma vez sem compromissos de assiduidade, (ou de revisão nos textos), vou semanalmente começar a publicar no blog duas histórias distintas. Uma delas, apontada para um público mais jovem, e a outra, um "thriller" cuja história principia no rescaldo do 25 de Abril e, talvez um dia a consiga terminar...

Vamos lá então...


            26 De Abril de 1974, um dia depois da revolução. 

            Passava um minuto das nove e quarenta e cinco da manhã quando a policia política, PIDE/DGS, se rende incondicionalmente e a sua sede na rua António Maria Cardoso é ocupada por forças do exército e da marinha.
            Apenas duas horas depois, inicia-se a libertação dos presos políticos em Caxias e Peniche e, antes do final da tarde, militares munidos de G3’s vasculhavam as duas prisões certificando-se que ninguém ficava para trás.
            A notícia da queda do governo enchia de esperança aqueles que, há anos não tomavam o gosto da liberdade e, uma após outra, as celas iam sendo abertas deixando entrar um ligeiro odor a cravos vermelhos. Talvez fosse apenas por sugestão mas, todos os que tinham passado os últimos tempos naquelas fortificações, podiam jurar que o perfume de cravos, o símbolo da revolução, pairava no ar como o fresco aroma de um jardim.
            Às dez e cinquenta e cinco da noite apenas dois homens ainda circulavam teimosamente nos escuros corredores da fortaleza de Peniche. Apenas vinte e quatro horas antes, os Emissores Associados de Lisboa transmitiam a canção “E depois do Adeus” na voz de Paulo Carvalho, marcando o início das operações militares contra o regime. Uma hora e meia depois, a Rádio Renascença emite para o ar a musica “Grândola Vila Morena” indicando que as operações militares estavam em marcha e eram irreversíveis.

            – Só faltam mais estas três e, depois é a nossa vez de ir comemorar. – Informa o soldado Fernandes, enquanto com a ponta de baioneta afasta os lençóis de cima do beliche do pequeno e mal cheiroso compartimento. O companheiro, cansado das mais de nove horas de buscas ininterruptas, limitou-se a um encolher de ombros olhando em seguida, num gesto rotineiro, para uma e outra ponta do corredor, descansando depois a sua G3 no chão durante alguns segundos. – Vá lá… anima-te e baixa a guarda. Se não tivemos problemas até agora, também já não vamos ter.
            – Vá! Despacha-te com isso. – Ordenou o soldado Pais. Competia-lhe a ele fazer a vigia e, o tom autoritário saiu-lhe apenas devido ao cansaço com que se encontrava e ao desespero de há mais de uma semana não saber o que era uma cama macia. Afinal, tinham os dois a mesma patente e tinham entrado para o Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha na mesma altura, pelo que não tinha o direito de usar um tom autoritário para com o companheiro.
            – Esta também está limpa. – Bradou o soldado Fernandes, completando a inspecção da cela com algumas coronhadas na parede. O som baço das pancadas e algumas lascas de cal amarelada que se soltaram com o embate, convenceram-no que não havia nenhuma cavidade oculta. – Passemos à próxima.
            Mais uma vez, a mesma rotina.
            A porta da cela era aberta e um soldado entrava enquanto o outro ficava de vigia.
            A baioneta do soldado Pais começou por afastar os lençóis dos dois beliches picando o fino colchão com a ponta. Olhou para o pequeno cubículo e em seguida para o companheiro que montava uma desleixada guarda, com a arma encostada à parede enquanto retirava de um dos muitos bolsos das calças um maço de tabaco meio amarrotado com desenho de um barco branco em frente de uma ponte dourada.
            – Tenho de deixar esta merda! – Afirmou, ao mesmo tempo que acendia um cigarro e voltava a guardar o maço de Porto no bolso. – A três escudos e cinquenta o pacote, só os ricos é que podem fumar.
            – Não sei porque estamos com este trabalho todo. – Retorquiu Pais, sem ligar ao que o colega dizia. – É impossível um homem esconder-se nestas celas minúsculas e as paredes são de pedra maciça. Só de pensar que já há nove horas que ando nisto…
            – Então pá… acalma-te! Estamos quase a acabar. Verifica o cesto da roupa e passamos a outra.
            – O cesto da roupa? O que pensas encontrar lá? A cabeça do Salazar? – Sem esperar resposta e, como que para libertar um pouco da tensão acumulada nas últimas horas, faz uma investida contra o cesto de verga que se encontrava a um canto da cela e espeta-lhe a baioneta com todas as forças.
            Um grito abafado preencheu o silêncio em que a prisão se encontrava ecoando na escuridão até esmorecer num suspiro. O cesto tombou quando o soldado retirou a afiada lâmina pondo a descoberto um monte de roupa enxovalhada. Uma criança rola para fora do seu esconderijo ficando depois encolhida no chão segurando a perna ferida com uma expressão de dor e sofrimento estampada no rosto mas, sem pronunciar um único som. Os dois soldados demoraram alguns segundos a reagir àquela inesperada situação. Muito improvavelmente, podiam esperar encontrar ainda alguém escondido na fortaleza mas… uma criança; um miúdo que parecia não ter mais de oito anos? Era a última coisa com que esperavam deparar-se naquele sítio.