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terça-feira, 15 de março de 2016

A Ilha da Vergonha (015)

As sobrancelhas do homem ao leme do Almagreira 1974 arquearam-se de satisfação ao avistar a bóia vermelha que flutuava no meio das ondas. Virou barco ligeiramente para bombordo e cortou toda a potência aos motores. O sol reflectiu no branco brilhante dos sete metros de fibra de vidro da embarcação, despertando alguns olhares curiosos de banhistas que descansavam pachorrentamente na pequena praia do Carreiro do Mosteiro.
Aparentando cerca de quarenta anos, o homem saltou para o convés com a agilidade de um garoto, mostrando um tronco nu bronzeado e bem constituído com a metade superior do fato de mergulho a pender-lhe pela cintura. Debruçou-se para fora e, com precisão, apanhou com um gancho a corda que segurava a bóia.
«É mesmo aqui o sítio.» – Pensou para consigo. Um brilho de prazer reflectiu-se no azul cristalino dos seus olhos, antecipando a serenidade que o mergulho naquelas águas frias sempre lhe proporcionavam.
Preparava-se para lançar a âncora e vestir o equipamento de mergulho quando é sobressaltado por uma sirene estridente seguida por uma voz metálica saída de um megafone:

“ATENÇÃO ALMAGREIRA 1974, NÃO FAÇA NENHUM GESTO E NÃO LIGUE OS MOTORES. PERMANEÇA ONDE ESTÁ!”


A embarcação negra da Polícia Marítima abrandava agora a marcha deixando atrás de si um rasto na ondulação como uma auto-estrada que se abria à sua passagem. Acompanhando o barulho da sirene e a voz autoritária do polícia, um festival de luzes azuis e vermelhas tornavam aquela imagem já por si ameaçadora, ainda mais imponente.
Os dois barcos alinharam-se lado a lado perante o olhar atónito do homem do barco branco. Segundos depois, dois dos três membros da embarcação da polícia soltavam para bordo do Almagreira.
O vozeirão que se tinha ouvido pelo megafone contrastava em tudo com a primeira figura a apresentar-se. O agente de primeira classe Amílcar Rocha – como se via escrito em destaque com letras prateadas na placa presa ao bolso esquerdo da farda azul do oficial – apresentou-se com uma leve continência ao homem do barco, ignorando o polícia que saltava atrás dele.
– Estamos a inspeccionar todas as embarcações que se encontrem num raio de cinco milhas da ilha – informou. – Posso saber o seu nome e o motivo de estar aqui parado?
A voz, embora mais nítida e grave, era sem dúvida a mesma que tinha há instantes berrado no megafone. O agente aparentava os seus cinquenta, sessenta anos. Com pouco mais de um metro e sessenta de altura, cabelos curtos já com um tom grisalho e um estômago que o cinto demasiado apertado deixava adivinhar ser um bom prato (e um bom copo), olhava para o proprietário do Almagreira com ar interrogativo à espera de ver as suas perguntas respondidas e tentando descodificar alguma reacção por parte do inquirido.
– Claro – disse o homem. – Chamo-me João Martins. Costumo fazer mergulho aqui. Mas… há algum problema? Aconteceu alguma coisa.
– É só rotina. – Respondeu o agente ao mesmo tempo que perscrutava com os olhos o conteúdo visível do barco. – Então e… Faz pesca desportiva? É apenas mergulho…
– Fotos! – Respondeu João, desviando o olhar por cima do ombro do agente Rocha tentando ver melhor o que o outro polícia fazia.
– Hum… hum… – assentiu o agente. – Então e tem estado tudo calmo por aqui? Nada de estranho?
– Estranho como? – Perguntou.
– Diga-me você. – Voltou o agente, como se estivesse a insinuar alguma coisa. – Por vezes passam-se coisas estranhas no mar.
Antes de João ter tempo para responder, o outro polícia finalmente decidiu mexer-se dirigindo-se para algo pousado num canto que lhe chamou a atenção.
– O que é isto? – Perguntou, pegando no gancho que há pouco tempo tinha sido usado para recolher a bóia.
Mais uma vez, João Martins não teve tempo de responder. Um grito de alarme soou vindo do barco da polícia fazendo com que todos se virassem para o agente que ficara no barco e que agora gesticulava furiosamente apontando qualquer coisa no mar ao lado direito do Almagreira.
– Está qualquer coisa na água – gritava – a estibordo.
Os três homens olharam em simultâneo para algo flutuava por entre as ondas, algo escuro que, ora aparecia ora desaparecia.
– Está tudo bem. – Respondeu o agente Rocha, sinalizando com a mão direita para que o colega se acalmasse. – É apenas um saco de plástico.
Mas o agente de terceira classe J. Faria não era da mesma opinião. Ainda com o gancho na mão inclinou-se sobre a beirada do barco e, esticando o corpo com mais de um metro e oitenta, fez valer a força dos seus vinte e oito anos e começou a puxar o saco de plástico preto, numa tentativa de verificar se estava mesmo vazio.
– Ajude-me aqui Rocha – pediu, ao ver que o saco era mais pesado do que supunha. – Há alguma coisa lá dentro.
O balofo oficial, muito a custo lá conseguiu inclinar-se para fora o suficiente para ajudar a puxar o saco para dentro do Almagreira. Uma corda branca fechava-o hermeticamente e impedia o acesso ao seu conteúdo.
Amílcar Rocha, apesar de ainda a recuperar do esforço, soube imediatamente do que se tratava. Já não era a primeira vez que via um volume daquele género dentro de um saco preto, embora estivesse mais habituado a vê-los com um fecho de correr em vez de uma corda a fechá-los, e num local mais seco e frio… na morgue.
– Uma faca, depressa! – Gritou. – É preciso abrir o saco. Uma faca… uma tesoura… qualquer coisa.
O agente Faria compreendeu também quase imediatamente qual o motivo da excitação do seu superior. Utilizando o gancho uma vez mais, desta vez com um cuidado redobrado, começou a rasgar o saco de plástico negro pondo a descoberto a sua sinistra carga.
– Depressa – gritou Rocha novamente. – Vê se ainda está vivo.
O treino de primeiros socorros que fora obrigado a repetir consecutivamente enquanto ainda era um estagiário compensou agora o agente Faria que, numa meticulosa sequência de gestos automáticos, erguia com cuidado a nuca da criança deitada sobre o saco preto, agora já totalmente aberto como se tratasse de uma manta. Os dois dedos da mão esquerda, indicador e médio, posicionaram-se levemente sobre a artéria carótida enquanto quase encostava o ouvido à boca e nariz do miúdo tentando sentir qualquer indício de respiração.
– Não respira! – Gritou. – E a pulsação quase não se nota.
– Levanta-lhe o queixo! – Ordenou Rocha, pondo-se de joelhos ao lado da vítima, temos de tentar fazê-lo respirar.
Faria retirou o braço debaixo da nuca do miúdo e, com a mão esquerda ergueu-lhe um pouco o maxilar. Ao mesmo tempo apertou-lhe com firmeza o nariz, encheu bem os pulmões e colando os lábios à boca da vítima, soprou duas vezes. Quando sentiu os pulmões da criança cheios, ergue-se para tomar fôlego. «Doze respirações a cada minuto.» – Pensou, recordando as aulas de primeiros socorros. – «Repetir a cada cinco segundos e voltar a verificar a respiração e pulsação.» Voltou a repetir a manobra, desta vez terminando com os dedos mais uma vez sobre a carótida e o ouvido sobre o nariz a tentar captar algum vestígio de vida.
– Não sinto nada! – Gritou.
Posicionado de joelhos ao lado da criança, a memória do agente Rocha trabalhava a toda a velocidade tentando recuperar a sequência exacta do procedimento para a massagem cardíaca que sabia ter assistido numa formação há cinco anos atrás: Encontra o apêndice xifóide e conta três dedos acima, posiciona a mão com a palma para baixo e intercala os dedos com a segunda mão… «Lembro-me bem o que raio é o apêndice xifoide.» – Rosnou baixinho para com ele. – Abanou a cabeça e deixou que o instinto o guiasse. Colocou as mãos, uma sobre a outra por cima do peito da criança e, com os braços esticados, começou a fazer pressão. Uma, duas, três… contou quinze vezes e fez sinal ao agente Faria para repetir a respiração artificial.
– Não vale a pena. – Informou tristemente o agente de terceira classe. – Está morto.
Os dois entreolharam-se durante alguns segundos em silêncio quando, como se puxado pelo cordão de uma marionete, o braço do miúdo mexe-se alguns centímetros na direcção de Amílcar e a mão abre-se, exibindo um pequeno rectângulo de plástico vermelho.
«Está vivo!» – Gritaram os dois.
Mas não estava. Tentaram uma vez mais, perceber a existência de algum sinal vital mas foi em vão. Um último espasmo ou talvez devido à oscilação do barco tinha dado origem àquele esperançoso movimento. O miúdo, aparentando ter pouco mais de dez anos, jazia inerte no convés do barco com a mão direita aberta exibindo o pequeno pedaço de plástico brilhante como se, num último e desesperado gesto antes de falecer, quisesse oferecer uma jóia valiosa aos agentes que o tinham, tentado salvar.


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