"(…) uma criança; um miúdo que parecia não ter mais de oito anos? Era a última coisa com que esperavam deparar-se naquele sítio."
– Tem calma. Está tudo bem agora, ninguém te vai fazer mal. Como te chamas?
O rapaz
encolheu-se um pouco mais ao ver a figura enorme do soldado avançar para ele.
Segurava a perna ferida com força mas, a sua expressão era agora mais de receio
do que de dor. Pais encostou a G3 a um canto e aproximou-se cuidadosamente.
– Não
tenhas medo. Deixa-me ver essa tua ferida. – O rapaz permitiu que o soldado lhe
afastasse as mãos e examinasse o corte feito pela baioneta. Não era muito
profundo, nada que um penso rápido não resolvesse. – É melhor chamarmos alguém
e avisar o que encontramos.
– Eu vou. –
Prontificou-se o soldado Fernandes. – É melhor chamar um médico também.
O eco das
passadas rápidas do soldado logo desapareceram nos compridos corredores do
forte-prisão e a atenção de Pais voltou-se novamente para o miúdo que
permanecia no chão sem pronunciar um único som.
– Pronto. O
meu colega já foi buscar alguém para cuidar de ti. Não me queres dizer o teu
nome? Eu chamo-me Zé.
O tom calmo
da voz do soldado pareceu produzir algum efeito no rapaz que, pouco a pouco,
foi perdendo o olhar de terror sendo este substituído por uns olhos azuis,
cristalinos, que olhavam o soldado José Fernandes interrogativamente.
Finalmente, balbuciou alguma coisa imperceptível.
– Desculpa,
não ouvi. Estavas a dizer que o teu nome era…
– João! –
Disse o rapaz com a voz ainda trémula. – Mas aqui todos me chamam apenas miúdo.
– E tu?
Como preferes que te chamem?
O rapaz
encolheu os ombros e sentou-se, já mais à vontade.
– Tanto
faz. – Respondeu. – Onde estão as outras pessoas? Foram-se embora?
– Foram. E
tu, porque estás aqui?
– Eu? Eu
vivo aqui. – Respondeu o rapaz pondo-se em pé com um ar de importância. – Cuido
dos homens que cá estão, ajudo-os a fazerem as suas tarefas, a lavarem-se, e
mais coisas. Em troca, posso comer e dormir com eles.
O soldado
Pais não queria acreditar no que estava a ouvir. Sem dizer uma palavra começou
a examinar pormenorizadamente o rapazinho que tinha à sua frente. Parecia cuidado,
sem vestígios de maus-tratos. Os grandes e brilhantes olhos azuis enquadravam-se
perfeitamente na sua cabeleira loura e, a pele clara dos braços que saíam por
baixo da camisa cinzenta com as mangas arregaçadas, mostrava apenas algumas cicatrizes
antigas, já de alguns anos atrás.
– Diz-me
uma coisa… que idade tens?
– Eu? Nove
anos, mas já faço o trabalho de um homem.
– E… onde
moravas antes de vir para aqui? Quem eram os teus pais?
O rapaz
perdeu por momentos o seu ar autoritário, sentindo-se desfalecer e sentando-se
ao lado do soldado que se encontrava agachado a olhá-lo.
– Não sei.
Não me lembro de nada antes de vir para aqui. Uma vez perguntei a um senhor que
sempre me tratou muito bem como eu tinha vindo para cá mas ele também não me
soube dizer, ou não quis falar nisso pois disse-me que, se eu quisesse
continuar a ser bem tratado por todos, era melhor parar de fazer perguntas.
– E tu?
– Eu? Parei
de fazer perguntas.
Pais
colocou a sua mão sobre a cabeça do rapaz compreensivo. Também ele tinha
perdido os pais quando era ainda um miúdo e fora criado pelos avós maternos.
Fora obrigado a trabalhar desde muito cedo e viu no exército um escape para a
pacata e trabalhosa vida na aldeia do Sobral
da Lagoa, com as suas mais de trinta eiras,
quase uma por cada casa, e jeiras de
terrenos a perder de vista.
Os seus
pensamentos foram interrompidos pelo companheiro que retornava, seguido por
mais dois homens fardados e uma mulher que, pela vestimenta, aparentava ser
enfermeira. Em poucos instantes, após um rápido exame e algumas perguntas, o
rapaz foi levado pelos dois homens e, dez minutos depois, eram os dois soldados
que terminavam a busca às duas celas restantes e, também eles abandonavam o
forte de Peniche.
Os dois
foram elucidados sobre a necessidade de manter este episódio em segredo e, após
terem assinado um documento que os obrigava a manter o silêncio pelo menos durante
dez anos, receberam um prémio em dinheiro e uma semana de licença para que
pudessem descansar do trabalho ininterrupto que tinham já há mais de uma
semana.
Anos mais
tarde, após um encontro onde a conversa voou para as recordações do tempo de
tropa, lembraram-se de tentar saber que rumo tinha levado o rapaz mas, a única
informação que conseguiram foi que este tinha sido colocado num orfanato e que tinha
fugido com a idade de treze anos, sendo agora o seu paradeiro incerto.
(Fim do Prólogo)
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para quem quiser acompanhar:
A Ilha da Vergonha - 001
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para quem quiser acompanhar:
A Ilha da Vergonha - 001
1 comentário:
seguindo atenta e com muito agrado, esperando por mais.
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