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segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (003)

(Alguns anos mais tarde...)

            Vinte e sete de Julho do ano de dois mil e sete.

            O “Cavaleiro das Ondas” cortava a ondulação que se fazia sentir ao largo do cabo carvoeiro a um ritmo alucinante. O pequeno barco de passageiros suportava o embate das ondas com a experiência de anos e anos de idas e voltas à Ilha das Berlengas mas, o enorme barulho que fazia ao cavalgar as vagas, obrigava o coração dos onze passageiros acelerar ao mesmo tempo que o pensamento comum era:
«Foi desta que a quilha partiu.»
            Mas não partia.


Vinte e cinco minutos depois de sair do cais de embarque, chegava são e salvo às águas calmas da ilha e atracava junto à praia do Carreiro do Mosteiro onde os turistas podiam desembarcar e, finalmente respirar de alívio.
A penúltima passageira saltou para terra apoiada pelas mãos do marido que, na tentativa de a amparar, quase se desequilibrou escorregando no pavimento molhado do barco. Por muito pouco não foram os dois parar à água.
– Miro… – Gritou a mulher, já em cima da murada.
– Não foi nada, só escorreguei. – Pôs-se em pé com um salto acrobático e, em segundos estava também ele fora do barco e já junto da esposa. – Pronto, já cá estou. Não penses que te deixo viúva com um escorregão.
– Nem brinques. Não basta o que eu passo todos os dias devido ao teu trabalho, fico com o coração nas mãos cada vez que oiço as notícias.
– Pronto – replicou o homem escarrapachando um beijo na face da esposa. – Não falemos do meu trabalho. Finalmente tenho uns dias de férias, vamos tratar de aproveitá-los.
– Escuta, amor… – A voz dela tomou um tom adocicado enquanto lhe colocava os braços em volta do pescoço. – Acerca do teu trabalho, não achas que já é tempo de…
Um dedo decidido colocado meigamente sobre os seus lábios impediu-a de continuar.
– Já falámos sobre isso. Ainda me faltam alguns anos e depois tenho a reforma por completo. – Retirou o dedo e retribuiu-lhe o abraço. – Vamos esquecer o trabalho e aproveitamos as férias, O.K?
Ela anuiu. Afinal, já há quatro anos que o marido não tinha uns dias de folga. Era tempo de aproveitar e não de discutir.
– Vamos ver a ilha? – Perguntou ela para mudar de conversa.
– Vamos!
Oldemiro Mendes detestava o seu nome. A tradição incutira-lhe a decisão do padrinho de baptismo e, agora não havia mais nada a fazer. Mendes no trabalho, Miro entre familiares e amigos mas, Oldemiro… só a mulher o chamava assim e apenas quando o queria atazanar. Casados há dezoito anos, só depois do casamento tinham descoberto que não podiam ter filhos mas isso apenas servira para os unir ainda mais e, apenas esse amor e cumplicidade lhes permitira ultrapassar os obstáculos que o trabalho de Miro na Policia Judiciária impunha na sua vida familiar.
Já com o barco em movimento, o comandante da embarcação forçando a voz rouca e gasta, característica de quem passou anos a ser açoitado pela aragem salgada do mar, lembrou aos passageiros que ainda o conseguiram escutar a hora de regresso ao continente. Quatro da tarde em ponto. Poucos minutos depois, saía do abrigo das águas calmas que envolviam a ilha e avançava em direcção ao porto de Peniche.
Um puxão mais forte na bolsa que trazia a tiracolo, obriga Miro a desviar o olhar do horizonte. Ao seu lado, os cabelos negros da mulher ondulavam ao sabor da brisa, escondendo por vezes os seus luzidios olhos negros que tanto o atraíam e que agora o interrogavam por cima de um indecifrável e quase místico sorriso.
Ofélia era uma mulher de aparência cuidada e um corpo que, aos quarenta e dois anos, fazia inveja a muitas com metade da sua idade, o que sempre desviara a atenção dos homens para as suas belas formas, mantendo disfarçada a sua excepcional inteligência. Tinham-se conhecido ainda em miúdos, quando a ordem alfabética dos seus nomes os obrigara a sentarem-se lado a lado. Seguiram depois áreas diferentes mas, aqueles olhos negros, brilhantes e misteriosos, ficaram sempre gravados na memoria de Miro, tanto que, quando mais tarde se voltaram a reencontrar, a amizade de criança transformou-se imediatamente num sentimento mais forte para o qual ambos não estavam preparados.
Dois meses mais tarde, saíam da igreja cobertos de arroz entre gritos de alegria e votos de felicidade.

Miro, olhou para os outros visitantes da ilha que iam desaparecendo pelas escadas íngremes que levavam à aldeia pesqueira e voltou-se novamente para a mulher que aguardava ansiosa pelo início do passeio. Inesperada e impetuosamente, pega-a pela cintura e ergue-a no ar tão facilmente como se de uma pluma se tratasse, apanhando-a completamente desprevenida.
– O que é isso agora? – Gritou ela enquanto esperneava para se libertar e ria à gargalhada.
Um prolongado e fogoso beijo acabou imediatamente com a vontade de sair dos braços do marido. Já com os pés na plataforma mas ainda encostada ao peito de Miro, teve então a sua resposta:
– Amo-te! Amo-te tanto agora como no dia do nosso casamento.
Ela não respondeu, limitando-se a abraçá-lo ainda com mais força ficando os dois assim, agarradinhos com os olhos fechados a ouvir apenas as gaivotas e o murmúrio do mar. Sorriram ao abrir os olhos em simultâneo e, finalmente começaram a subir até ao bairro dos pescadores, deixando para trás a plataforma de embarque e a estreita praia de água translúcida.

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1 comentário:

Filomena Pinto disse...

Nunca tinha tido a experiência de ler contos desta forma, mas estou a achar muito interessante. E cá vou eu ficar a aguardar continuação. Boa noite, amigo.