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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (006)

"– Mas… o que aconteceu?
 – Aconteceu… aconteceu que eu ia tirar-te uma foto e o raio do telefone caiu-me neste maldito buraco que parece não ter fim."


– Deixa-me ver isso. – Pediu Ofélia, ajudando o marido a retirar o braço e, por sua vez, colocando o dela, obtendo os mesmos resultados.
– Então?
– Nada! Será que isto tem mais algum piso aqui em baixo? Pareceu-me sentir uma corrente de ar vinda da fenda.
– Penso que não – respondeu Miro. – Pelo menos o fulano da recepção não disse nada quando nos falou dos quartos. Se fosse o cas… – Parou de falar de repente, encostando o ouvido à ranhura no chão.
– O que foi? Calaste-te de repente.
– Chiu!
– Estavas a falar do…
– Chiu! – Insistiu Miro, fazendo um elucidativo gesto com a mão para que a mulher permanecesse em silêncio. Ofélia, embora intrigada optou por esperar e, poucos segundos depois, o marido desistia e voltava-se para ela.
– O que foi? – Perguntou novamente.
– Pareceu-me ter ouvido algo… um gemido. Mas se calhar foi apenas o barulho das ondas. O forte deve ter sido construído aproveitando as rochas como fundações. Muito provavelmente, esta fenda só termina no fundo do mar.
– Vá… não sejas pessimista – confortou Ofélia, não cedendo à tentação de encostar também o ouvido à ranhura. – Não oiço nada. Deve ter sido impressão tua. Vamos… anda falar com o tipo do balcão e perguntar se o forte tem subterrâneos.
– Certo. Vamos lá então, mas cheira-me que posso dizer adeus ao telemóvel.
  
O sombrio hall de entrada ficava a poucos passos do local onde Miro perdera o telefone.
A sala de recepção resumia-se a um cubículo sem janelas com pouco mais de dez metros quadrados. Os móveis em mogno e pau-santo, de uma cor quase preta, tornavam o ambiente bastante pesado, e a decoração também não ajudava: Uma pesada estante repleta de livros velhos e bolorentos; duas cadeiras negras forradas com veludo roxo em frente de uma secretária antiga igualmente negra; uma mesinha de chá coberta com revistas e panfletos; alguns quadros com grandes molduras douradas representando soldados do século XVIII e um lustre que mais parecia a roda de uma carroça com lâmpadas em forma de vela.
Por detrás da secretária, iluminado pela luz fraca de um pequeno candeeiro, uma figura caricata com uns minúsculos óculos ovais enterrados na ponta do nariz, olhava o casal parado à porta.

foto: Early Office Museum
– Posso ajudá-los? – Perguntou, sem se levantar, com uma voz firme mas exageradamente baixa, como se estivesse numa biblioteca.
Na placa triangular com letras brancas gravadas num fundo azul, estrategicamente colocada em cima da mesa, podia ler-se “Benzino Ferreira”. Ofélia e Miro sorriram um para o outro. Nem eles conseguiriam encontrar um nome mais apropriado para o personagem à sua frente. Já bastante calvo, franzino, trajando um fato cinzento-escuro com umas riscas grossas, uma camisa branca e um laço vermelho com bolinhas brancas preso no pescoço e com aqueles óculinhos enterrados no nariz que lhe davam um ar de bibliotecário, parecia mesmo um Benzino.
– Dá-me licença? – Apressou-se Miro a perguntar. Entrou antes de lhe ser dado permissão, tentando disfarçar o sorriso.
– Façam favor, senhores…
– Oldemiro. Oldemiro e Ofélia Mendes.
– Então, em que posso ajudá-los? – Perguntou, já depois do casal se encontrar sentado em sua frente.
– Bem, senhor… Benzino? – Começou Miro, fazendo uma pequena pausa antes de pronunciar a última palavra, ainda com algumas dúvidas se seria mesmo esse o nome do homem em sua frente.
– Benzino Ferreira. – Completou o homem, mantendo um ar sério. – Não se sintam acanhados. Já estou habituado a que perguntem o meu nome duas vezes, esse foi o principal motivo que me levou a escrevê-lo.
– Pois… – Pronunciaram os dois em uníssono.
– Mas, embora não goste muito dele, já me habituei e, depois de saber a história que levou o meu Pai a chamar-me Benzino, dou-me por feliz por ter este nome.
– Ah, sim?
– Bem… O meu padrinho, que era dono de uma loja de materiais de pintura e queria que o padre me baptizasse Terbentino, mas o meu pai não deixou. Ora, a alternativa que agradou aos dois na altura, foi Benzino. Portanto… Do mal, o menos. – Parou de falar, enquanto o atónito casal se entreolhava.
«Se me tivessem atribuído um nome desses, quando completasse os dezoito anos tinha corrido para o primeiro balcão do registo civil que me aparecesse à frente.» – Pensaram os dois.
– E quanto ao assunto que os trouxe aqui? – Perguntou Benzino, mudando o rumo à conversa.
– Pois… – Voltou Miro a pegar na palavra, acomodando-se melhor na cadeira. – Gostava de saber uma coisa há cerca do forte. Por acaso esta construção não tem subterrâneos ou catacumbas ou algo do género, tem?
– Subterrâneos? – Perguntou Benzino, mostrando indiferença, mas notando-se uma ligeira modificação no olhar.
– Subterrâneos… cave… enfim, alguma construção por baixo do solo que não venha no catálogo para turistas.
– E, por que pergunta?
– Bem… Foi uma coisa estúpida que me aconteceu. Eu estava a tentar fotografar a minha mulher com o telemóvel, e ele caiu-me numa fenda no chão. Tentei apanhá-lo mas, o meu braço não conseguiu encontrar o fundo, daí eu pensar que, se existisse uma cave, talvez fosse possível recuperá-lo.
– Hum… estou a ver. – As sobrancelhas levemente arqueadas, voltaram á sua posição inicial enquanto respondia. – Lamento dizer-lhe que esta estrutura foi erguida directamente por cima das rochas e, salvo a existência de alguma gruta escavada pela erosão, debaixo deste chão, – deu umas pancadinhas significativas com o sapato, como que para realçar o que ia dizer – Só há pedra sólida. Se me pedir a opinião, pode pensar em comprar outro telemóvel.
– Bem… então não há mais nada a fazer. – Disse Ofélia, falando pela primeira vez enquanto tocava ao de leve no braço do marido, numa intenção clara de sair dali.
– Sim. Eu confesso que ainda estava com esperança, mas sendo assim, – levantou-se. – Não lhe vou tomar mais o seu tempo. Muito obrigado senhor Terbentino.
– Benzino! – Rectificou rapidamente Ofélia, reparando na postura tensa com que o recepcionista ficou.
– Claro… uh… Benzino. – Gaguejou Miro. – Desculpe-me. A conversa sobre o seu padrinho atrapalhou-me. Não leve a mal e, mais uma vez, muito obrigado.
Saíram os dois em passo acelerado e, assim que se viram novamente no pátio exterior, deram largas ao riso que estavam a aguentar desde a despedida.
Dois minutos depois de uma sonora e contagiante gargalhada que lhes levou as lágrimas aos olhos, conseguiram finalmente parar.
– “Obrigado senhor Terbentino.” – Repetiu Ofélia, imitando o marido.
– Pára! Já chega. As pessoas estão a olhar. – Implorou Miro, enxugando as lágrimas.
– Está bem. Está bem. Já te passou mais a neura com o telemóvel e podemos continuar a visita à ilha?
– Certo. Vamos lá. Aqui também já vimos tudo o que havia para ver.

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