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sábado, 9 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (002)

"(…) uma criança; um miúdo que parecia não ter mais de oito anos? Era a última coisa com que esperavam deparar-se naquele sítio."

           – Tem calma. Está tudo bem agora, ninguém te vai fazer mal. Como te chamas?
            O rapaz encolheu-se um pouco mais ao ver a figura enorme do soldado avançar para ele. Segurava a perna ferida com força mas, a sua expressão era agora mais de receio do que de dor. Pais encostou a G3 a um canto e aproximou-se cuidadosamente.
            – Não tenhas medo. Deixa-me ver essa tua ferida. – O rapaz permitiu que o soldado lhe afastasse as mãos e examinasse o corte feito pela baioneta. Não era muito profundo, nada que um penso rápido não resolvesse. – É melhor chamarmos alguém e avisar o que encontramos.
           – Eu vou. – Prontificou-se o soldado Fernandes. – É melhor chamar um médico também.
            O eco das passadas rápidas do soldado logo desapareceram nos compridos corredores do forte-prisão e a atenção de Pais voltou-se novamente para o miúdo que permanecia no chão sem pronunciar um único som.
           – Pronto. O meu colega já foi buscar alguém para cuidar de ti. Não me queres dizer o teu nome? Eu chamo-me Zé.
            O tom calmo da voz do soldado pareceu produzir algum efeito no rapaz que, pouco a pouco, foi perdendo o olhar de terror sendo este substituído por uns olhos azuis, cristalinos, que olhavam o soldado José Fernandes interrogativamente. Finalmente, balbuciou alguma coisa imperceptível.
            – Desculpa, não ouvi. Estavas a dizer que o teu nome era…
            – João! – Disse o rapaz com a voz ainda trémula. – Mas aqui todos me chamam apenas miúdo.
            – E tu? Como preferes que te chamem?
            O rapaz encolheu os ombros e sentou-se, já mais à vontade.
            – Tanto faz. – Respondeu. – Onde estão as outras pessoas? Foram-se embora?
            – Foram. E tu, porque estás aqui?
            – Eu? Eu vivo aqui. – Respondeu o rapaz pondo-se em pé com um ar de importância. – Cuido dos homens que cá estão, ajudo-os a fazerem as suas tarefas, a lavarem-se, e mais coisas. Em troca, posso comer e dormir com eles.
            O soldado Pais não queria acreditar no que estava a ouvir. Sem dizer uma palavra começou a examinar pormenorizadamente o rapazinho que tinha à sua frente. Parecia cuidado, sem vestígios de maus-tratos. Os grandes e brilhantes olhos azuis enquadravam-se perfeitamente na sua cabeleira loura e, a pele clara dos braços que saíam por baixo da camisa cinzenta com as mangas arregaçadas, mostrava apenas algumas cicatrizes antigas, já de alguns anos atrás.
            – Diz-me uma coisa… que idade tens?
            – Eu? Nove anos, mas já faço o trabalho de um homem.
            – E… onde moravas antes de vir para aqui? Quem eram os teus pais?
            O rapaz perdeu por momentos o seu ar autoritário, sentindo-se desfalecer e sentando-se ao lado do soldado que se encontrava agachado a olhá-lo.
            – Não sei. Não me lembro de nada antes de vir para aqui. Uma vez perguntei a um senhor que sempre me tratou muito bem como eu tinha vindo para cá mas ele também não me soube dizer, ou não quis falar nisso pois disse-me que, se eu quisesse continuar a ser bem tratado por todos, era melhor parar de fazer perguntas.
            – E tu?
            – Eu? Parei de fazer perguntas.

            Pais colocou a sua mão sobre a cabeça do rapaz compreensivo. Também ele tinha perdido os pais quando era ainda um miúdo e fora criado pelos avós maternos. Fora obrigado a trabalhar desde muito cedo e viu no exército um escape para a pacata e trabalhosa vida na aldeia do Sobral da Lagoa, com as suas mais de trinta eiras, quase uma por cada casa, e jeiras de terrenos a perder de vista.
            Os seus pensamentos foram interrompidos pelo companheiro que retornava, seguido por mais dois homens fardados e uma mulher que, pela vestimenta, aparentava ser enfermeira. Em poucos instantes, após um rápido exame e algumas perguntas, o rapaz foi levado pelos dois homens e, dez minutos depois, eram os dois soldados que terminavam a busca às duas celas restantes e, também eles abandonavam o forte de Peniche.
            Os dois foram elucidados sobre a necessidade de manter este episódio em segredo e, após terem assinado um documento que os obrigava a manter o silêncio pelo menos durante dez anos, receberam um prémio em dinheiro e uma semana de licença para que pudessem descansar do trabalho ininterrupto que tinham já há mais de uma semana.

            Anos mais tarde, após um encontro onde a conversa voou para as recordações do tempo de tropa, lembraram-se de tentar saber que rumo tinha levado o rapaz mas, a única informação que conseguiram foi que este tinha sido colocado num orfanato e que tinha fugido com a idade de treze anos, sendo agora o seu paradeiro incerto.

(Fim do Prólogo)

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para quem quiser acompanhar:
A Ilha da Vergonha - 001

1 comentário:

Ffilomena Pinto disse...

seguindo atenta e com muito agrado, esperando por mais.