E... porque não iniciar um livro por aqui? Ou talvez dois...
Mais uma vez sem compromissos de assiduidade, (ou de revisão nos textos), vou semanalmente começar a publicar no blog duas histórias distintas. Uma delas, apontada para um público mais jovem, e a outra, um "thriller" cuja história principia no rescaldo do 25 de Abril e, talvez um dia a consiga terminar...
Vamos lá então...
26 De Abril de 1974, um dia depois da revolução.
Passava um
minuto das nove e quarenta e cinco da manhã quando a policia política, PIDE/DGS,
se rende incondicionalmente e a sua sede na rua António Maria Cardoso é ocupada
por forças do exército e da marinha.
Apenas duas
horas depois, inicia-se a libertação dos presos políticos em Caxias e Peniche e,
antes do final da tarde, militares munidos de G3’s vasculhavam as duas prisões certificando-se
que ninguém ficava para trás.
A notícia
da queda do governo enchia de esperança aqueles que, há anos não tomavam o
gosto da liberdade e, uma após outra, as celas iam sendo abertas deixando
entrar um ligeiro odor a cravos vermelhos. Talvez fosse apenas por sugestão
mas, todos os que tinham passado os últimos tempos naquelas fortificações,
podiam jurar que o perfume de cravos, o símbolo da revolução, pairava no ar
como o fresco aroma de um jardim.
Às dez e cinquenta
e cinco da noite apenas dois homens ainda circulavam teimosamente nos escuros
corredores da fortaleza de Peniche. Apenas vinte e quatro horas antes, os
Emissores Associados de Lisboa transmitiam a canção “E depois do Adeus” na voz
de Paulo Carvalho, marcando o início
das operações militares contra o regime. Uma hora e meia depois, a Rádio Renascença emite para o ar a
musica “Grândola Vila Morena” indicando que as operações militares estavam em
marcha e eram irreversíveis.
– Só faltam
mais estas três e, depois é a nossa vez de ir comemorar. – Informa o soldado Fernandes,
enquanto com a ponta de baioneta afasta os lençóis de cima do beliche do
pequeno e mal cheiroso compartimento. O companheiro, cansado das mais de nove
horas de buscas ininterruptas, limitou-se a um encolher de ombros olhando em
seguida, num gesto rotineiro, para uma e outra ponta do corredor, descansando
depois a sua G3 no chão durante alguns segundos. – Vá lá… anima-te e baixa a
guarda. Se não tivemos problemas até agora, também já não vamos ter.
– Vá!
Despacha-te com isso. – Ordenou o soldado Pais. Competia-lhe a ele fazer a
vigia e, o tom autoritário saiu-lhe apenas devido ao cansaço com que se
encontrava e ao desespero de há mais de uma semana não saber o que era uma cama
macia. Afinal, tinham os dois a mesma patente e tinham entrado para o Regimento de Infantaria 5 das Caldas da
Rainha na mesma altura, pelo que não tinha o direito de usar um tom autoritário
para com o companheiro.
– Esta também
está limpa. – Bradou o soldado Fernandes, completando a inspecção da cela com
algumas coronhadas na parede. O som baço das pancadas e algumas lascas de cal amarelada
que se soltaram com o embate, convenceram-no que não havia nenhuma cavidade
oculta. – Passemos à próxima.
Mais uma
vez, a mesma rotina.
A porta da
cela era aberta e um soldado entrava enquanto o outro ficava de vigia.
A baioneta
do soldado Pais começou por afastar os lençóis dos dois beliches picando o fino
colchão com a ponta. Olhou para o pequeno cubículo e em seguida para o
companheiro que montava uma desleixada guarda, com a arma encostada à parede
enquanto retirava de um dos muitos bolsos das calças um maço de tabaco meio
amarrotado com desenho de um barco branco em frente de uma ponte dourada.
– Tenho de
deixar esta merda! – Afirmou, ao mesmo tempo que acendia um cigarro e voltava a
guardar o maço de Porto no bolso. – A
três escudos e cinquenta o pacote, só os ricos é que podem fumar.
– Não sei
porque estamos com este trabalho todo. – Retorquiu Pais, sem ligar ao que o
colega dizia. – É impossível um homem esconder-se nestas celas minúsculas e as
paredes são de pedra maciça. Só de pensar que já há nove horas que ando nisto…
– Então pá…
acalma-te! Estamos quase a acabar. Verifica o cesto da roupa e passamos a
outra.
– O cesto
da roupa? O que pensas encontrar lá? A cabeça do Salazar? – Sem esperar
resposta e, como que para libertar um pouco da tensão acumulada nas últimas
horas, faz uma investida contra o cesto de verga que se encontrava a um canto
da cela e espeta-lhe a baioneta com todas as forças.
Um grito
abafado preencheu o silêncio em que a prisão se encontrava ecoando na escuridão
até esmorecer num suspiro. O cesto tombou quando o soldado retirou a afiada
lâmina pondo a descoberto um monte de roupa enxovalhada. Uma criança rola para
fora do seu esconderijo ficando depois encolhida no chão segurando a perna ferida
com uma expressão de dor e sofrimento estampada no rosto mas, sem pronunciar um
único som. Os dois soldados demoraram alguns segundos a reagir àquela
inesperada situação. Muito improvavelmente, podiam esperar encontrar ainda
alguém escondido na fortaleza mas… uma criança; um miúdo que parecia não ter
mais de oito anos? Era a última coisa com que esperavam deparar-se naquele
sítio.
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