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terça-feira, 22 de março de 2016

“Uma Lágrima por Bruxelas”




“Uma Lágrima por Bruxelas”

Amanhece triste, o sol da primavera.
A pomba branca da paz, ficou esquecida.
Chora o mundo, chora a própria vida.
Tétricos são os tempos, nesta era.

Vestem-se de luto todas as bandeiras
que sobem a meia haste, em puro pranto.
Choram um povo e um Rei sobre o seu manto,
mágoas negras, amarelas e vermelhas.

Erguem-se ao vento vozes inconformadas
com um fanatismo porco, desumano
que, tem no âmago apenas o terror.

Esperam que essas almas, desalmadas,
abram os olhos, conscientes se um engano
e, possam trocar o ódio pelo Amor.


© H. Vicente Cândido, 22-03-2016

terça-feira, 15 de março de 2016

A Ilha da Vergonha (015)

As sobrancelhas do homem ao leme do Almagreira 1974 arquearam-se de satisfação ao avistar a bóia vermelha que flutuava no meio das ondas. Virou barco ligeiramente para bombordo e cortou toda a potência aos motores. O sol reflectiu no branco brilhante dos sete metros de fibra de vidro da embarcação, despertando alguns olhares curiosos de banhistas que descansavam pachorrentamente na pequena praia do Carreiro do Mosteiro.
Aparentando cerca de quarenta anos, o homem saltou para o convés com a agilidade de um garoto, mostrando um tronco nu bronzeado e bem constituído com a metade superior do fato de mergulho a pender-lhe pela cintura. Debruçou-se para fora e, com precisão, apanhou com um gancho a corda que segurava a bóia.
«É mesmo aqui o sítio.» – Pensou para consigo. Um brilho de prazer reflectiu-se no azul cristalino dos seus olhos, antecipando a serenidade que o mergulho naquelas águas frias sempre lhe proporcionavam.
Preparava-se para lançar a âncora e vestir o equipamento de mergulho quando é sobressaltado por uma sirene estridente seguida por uma voz metálica saída de um megafone:

“ATENÇÃO ALMAGREIRA 1974, NÃO FAÇA NENHUM GESTO E NÃO LIGUE OS MOTORES. PERMANEÇA ONDE ESTÁ!”


A embarcação negra da Polícia Marítima abrandava agora a marcha deixando atrás de si um rasto na ondulação como uma auto-estrada que se abria à sua passagem. Acompanhando o barulho da sirene e a voz autoritária do polícia, um festival de luzes azuis e vermelhas tornavam aquela imagem já por si ameaçadora, ainda mais imponente.
Os dois barcos alinharam-se lado a lado perante o olhar atónito do homem do barco branco. Segundos depois, dois dos três membros da embarcação da polícia soltavam para bordo do Almagreira.
O vozeirão que se tinha ouvido pelo megafone contrastava em tudo com a primeira figura a apresentar-se. O agente de primeira classe Amílcar Rocha – como se via escrito em destaque com letras prateadas na placa presa ao bolso esquerdo da farda azul do oficial – apresentou-se com uma leve continência ao homem do barco, ignorando o polícia que saltava atrás dele.
– Estamos a inspeccionar todas as embarcações que se encontrem num raio de cinco milhas da ilha – informou. – Posso saber o seu nome e o motivo de estar aqui parado?
A voz, embora mais nítida e grave, era sem dúvida a mesma que tinha há instantes berrado no megafone. O agente aparentava os seus cinquenta, sessenta anos. Com pouco mais de um metro e sessenta de altura, cabelos curtos já com um tom grisalho e um estômago que o cinto demasiado apertado deixava adivinhar ser um bom prato (e um bom copo), olhava para o proprietário do Almagreira com ar interrogativo à espera de ver as suas perguntas respondidas e tentando descodificar alguma reacção por parte do inquirido.
– Claro – disse o homem. – Chamo-me João Martins. Costumo fazer mergulho aqui. Mas… há algum problema? Aconteceu alguma coisa.
– É só rotina. – Respondeu o agente ao mesmo tempo que perscrutava com os olhos o conteúdo visível do barco. – Então e… Faz pesca desportiva? É apenas mergulho…
– Fotos! – Respondeu João, desviando o olhar por cima do ombro do agente Rocha tentando ver melhor o que o outro polícia fazia.
– Hum… hum… – assentiu o agente. – Então e tem estado tudo calmo por aqui? Nada de estranho?
– Estranho como? – Perguntou.
– Diga-me você. – Voltou o agente, como se estivesse a insinuar alguma coisa. – Por vezes passam-se coisas estranhas no mar.
Antes de João ter tempo para responder, o outro polícia finalmente decidiu mexer-se dirigindo-se para algo pousado num canto que lhe chamou a atenção.
– O que é isto? – Perguntou, pegando no gancho que há pouco tempo tinha sido usado para recolher a bóia.
Mais uma vez, João Martins não teve tempo de responder. Um grito de alarme soou vindo do barco da polícia fazendo com que todos se virassem para o agente que ficara no barco e que agora gesticulava furiosamente apontando qualquer coisa no mar ao lado direito do Almagreira.
– Está qualquer coisa na água – gritava – a estibordo.
Os três homens olharam em simultâneo para algo flutuava por entre as ondas, algo escuro que, ora aparecia ora desaparecia.
– Está tudo bem. – Respondeu o agente Rocha, sinalizando com a mão direita para que o colega se acalmasse. – É apenas um saco de plástico.
Mas o agente de terceira classe J. Faria não era da mesma opinião. Ainda com o gancho na mão inclinou-se sobre a beirada do barco e, esticando o corpo com mais de um metro e oitenta, fez valer a força dos seus vinte e oito anos e começou a puxar o saco de plástico preto, numa tentativa de verificar se estava mesmo vazio.
– Ajude-me aqui Rocha – pediu, ao ver que o saco era mais pesado do que supunha. – Há alguma coisa lá dentro.
O balofo oficial, muito a custo lá conseguiu inclinar-se para fora o suficiente para ajudar a puxar o saco para dentro do Almagreira. Uma corda branca fechava-o hermeticamente e impedia o acesso ao seu conteúdo.
Amílcar Rocha, apesar de ainda a recuperar do esforço, soube imediatamente do que se tratava. Já não era a primeira vez que via um volume daquele género dentro de um saco preto, embora estivesse mais habituado a vê-los com um fecho de correr em vez de uma corda a fechá-los, e num local mais seco e frio… na morgue.
– Uma faca, depressa! – Gritou. – É preciso abrir o saco. Uma faca… uma tesoura… qualquer coisa.
O agente Faria compreendeu também quase imediatamente qual o motivo da excitação do seu superior. Utilizando o gancho uma vez mais, desta vez com um cuidado redobrado, começou a rasgar o saco de plástico negro pondo a descoberto a sua sinistra carga.
– Depressa – gritou Rocha novamente. – Vê se ainda está vivo.
O treino de primeiros socorros que fora obrigado a repetir consecutivamente enquanto ainda era um estagiário compensou agora o agente Faria que, numa meticulosa sequência de gestos automáticos, erguia com cuidado a nuca da criança deitada sobre o saco preto, agora já totalmente aberto como se tratasse de uma manta. Os dois dedos da mão esquerda, indicador e médio, posicionaram-se levemente sobre a artéria carótida enquanto quase encostava o ouvido à boca e nariz do miúdo tentando sentir qualquer indício de respiração.
– Não respira! – Gritou. – E a pulsação quase não se nota.
– Levanta-lhe o queixo! – Ordenou Rocha, pondo-se de joelhos ao lado da vítima, temos de tentar fazê-lo respirar.
Faria retirou o braço debaixo da nuca do miúdo e, com a mão esquerda ergueu-lhe um pouco o maxilar. Ao mesmo tempo apertou-lhe com firmeza o nariz, encheu bem os pulmões e colando os lábios à boca da vítima, soprou duas vezes. Quando sentiu os pulmões da criança cheios, ergue-se para tomar fôlego. «Doze respirações a cada minuto.» – Pensou, recordando as aulas de primeiros socorros. – «Repetir a cada cinco segundos e voltar a verificar a respiração e pulsação.» Voltou a repetir a manobra, desta vez terminando com os dedos mais uma vez sobre a carótida e o ouvido sobre o nariz a tentar captar algum vestígio de vida.
– Não sinto nada! – Gritou.
Posicionado de joelhos ao lado da criança, a memória do agente Rocha trabalhava a toda a velocidade tentando recuperar a sequência exacta do procedimento para a massagem cardíaca que sabia ter assistido numa formação há cinco anos atrás: Encontra o apêndice xifóide e conta três dedos acima, posiciona a mão com a palma para baixo e intercala os dedos com a segunda mão… «Lembro-me bem o que raio é o apêndice xifoide.» – Rosnou baixinho para com ele. – Abanou a cabeça e deixou que o instinto o guiasse. Colocou as mãos, uma sobre a outra por cima do peito da criança e, com os braços esticados, começou a fazer pressão. Uma, duas, três… contou quinze vezes e fez sinal ao agente Faria para repetir a respiração artificial.
– Não vale a pena. – Informou tristemente o agente de terceira classe. – Está morto.
Os dois entreolharam-se durante alguns segundos em silêncio quando, como se puxado pelo cordão de uma marionete, o braço do miúdo mexe-se alguns centímetros na direcção de Amílcar e a mão abre-se, exibindo um pequeno rectângulo de plástico vermelho.
«Está vivo!» – Gritaram os dois.
Mas não estava. Tentaram uma vez mais, perceber a existência de algum sinal vital mas foi em vão. Um último espasmo ou talvez devido à oscilação do barco tinha dado origem àquele esperançoso movimento. O miúdo, aparentando ter pouco mais de dez anos, jazia inerte no convés do barco com a mão direita aberta exibindo o pequeno pedaço de plástico brilhante como se, num último e desesperado gesto antes de falecer, quisesse oferecer uma jóia valiosa aos agentes que o tinham, tentado salvar.


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segunda-feira, 7 de março de 2016

A Ilha da Vergonha (014)

"(...)Já se preparava para retornar ao barco, quando a bota chuta qualquer coisa que vai embater na parede. Apontou automaticamente a luz da lanterna para o sítio onde ouviu o embate e baixou-se para examinar o pequeno objecto cinzento.
Era a bateria de um telemóvel."

Instantaneamente, soube onde estava. Estava por baixo do pátio interior do forte, mais exactamente, em abaixo da fresta onde o inspector tinha perdido o telefone, e tudo indicava que alguém ali estivera preso.
– Então? Está tudo bem aí dentro?
– Calma – ecoou a voz do sargento. – Já estou a sair. É só mais um segundo.
Pouco depois, deslizava triunfante para o bote, exibindo o troféu.
– E então? – Perguntou Lourenço, ansioso por saber como tinha corrido a exploração.
– Um cubículo mal cheiroso, – respondeu enquanto passava a máquina fotográfica para o colega. – E fosse quem fosse que ali esteve, não saiu há muito tempo. Encontrei esta bateria, que deve corresponder ao telemóvel do inspector, e ainda se notava um ligeiro cheiro a cera duma vela que encontrei no centro do compartimento.
 Lourenço corria uma a uma, as fotografias tiradas pelo sargento e ia acenando em concordância. Houve no entanto qualquer coisa que o fez voltar atrás e examinar uma das fotos com mais atenção.
– Estranho… – Disse como se tivesse a falar para consigo, enquanto analisava atentamente o pequeno ecrã.
– O que há de estranho?
– Hã?!
– T'ás hipnotizado ou quê? – Voltou o sargento, levantando a voz. – Estavas a dizer que era estranho… O que há de tão estranho nas fotos?
– Desculpa. – Respondeu um pouco atrapalhado como se estivesse acordado de um transe. – Esta foto aqui – disse, apontando com o indicador. – Não achas estranho?
– O quê? – Perguntou, arrancando-lhe a máquina das mãos. – Não vejo nada de especial.
– Não é a foto em si – respondeu o furriel. – Mas todo o conjunto. Em todas as fotos está tudo velho e degradado, mas esta aqui mostra uma vela usada em cima de uma carpete quase nova. Será que está a ocultar mais alguma coisa?
– Rais’te’parta! – Grunhiu o sargento, voltando a guardar a máquina no bolso e preparando-se para saltar de volta à gruta. – Como é que não reparei nisso antes.
– Eh! Pára! Onde pensas que vais?
– Vou voltar lá dentro.
– Espera aí… o tenente disse…
– Não quero saber… – Respondeu saltando do barco. – Temos que fazer um reconhecimento, não é? Então, tenho de confirmar se verifiquei tudo ou não.
– Hum… O.K., mas então deixa-me amarrar o barco, pois desta vez vou contigo.
– Como queiras. – Respondeu Paiva com um encolher de ombros.
Pela segunda vez, o cheiro nauseabundo da gruta atingiu o nariz do sargento que, embora já estivesse à espera, não conseguiu conter uma expressão de nojo. Apontou a lanterna para o colega que lhe retribuiu um olhar de repugnância enquanto tentava conter-se para não tapar o nariz.
– Porra – disse, abanando uma das mãos como que para afastar o odor. – Cheira mal como os cornos. Não sei como alguém podia estar aqui fechado.
Continuaram. Assim que fizeram a curva à esquerda, viram imediatamente o tapete no centro do cubículo. Realmente, assim a brilhar à luz das duas lanternas, contrastava ainda mais com o ambiente deteriorado do pequeno compartimento. A vela no centro ainda exalava um ligeiro odor a cera queimada, dissimulando um pouco o fedor a comida azeda misturada com o cheiro das fezes que reluziam no meio do bacio de ferro numa tonalidade castanho-esverdeada.
– Vamos lá examinar o tapete e dar o fora daqui o quanto antes. – Decretou Lourenço, passando à frente do camarada, dando um pontapé no prato que sustinha a vela e agarrando uma das pontas da carpete.
– Não! Espera! – Gritou Paiva.
Já não foi a tempo.
Os dois souberam imediatamente que tinham apenas umas décimas de segundo para agir. O clique inconfundível da “Boucing Betty” disparou uma injecção de adrenalina no sangue dos dois soldados fazendo o coração trabalhar três vezes mais rápido e apurando-lhes todos os reflexos ao extremo.


A mina anti-pessoal escondida numa fresta do solo rochoso tinha sido activada quando o pequeno arame, estrategicamente esticado por baixo da carpete, foi puxado pelas mãos precipitadas do furriel Lourenço. O pensamento racional deu lugar à vontade ancestral incutida nas células dos primeiros primatas de se manter vivo a todo o custo e, como se fosse planeado num efeito especial de cinema, os dois lançaram-se no ar pela estreita passagem enquanto atrás deles um cilindro de ferro fundido saltava mais de um metro do solo fazendo explodir uma carga de trinitrotolueno que disparou uma chuva de fragmentos de metal no meio de fumo, luz e um barulho ensurdecedor.
O zunido dos projecteis que procuravam atingir o corpo dos dois militares, associava-se ao eco da explosão e aos pedaços de rocha que desabavam atrás dos soldados como que tentando impedi-los de rebolar vivos para fora da gruta. Talvez juntando a sorte à habilidade e treino intensivo, os dois atingiram as águas do oceano no mesmo instante em que um pedaço de pedra do tamanho de um pequeno carro se soltava da parede de rocha destruindo o bote de borracha e, o corredor onde há momentos tinham passado, se enchia de pedregulhos e lama.
Silêncio...

Durante uns ameaçadores segundos o silêncio imperou naquele local, dando depois lugar a um zunido que se sobrepunha ao bater das ondas e ao grasnar das gaivotas. 
Mais uns segundos... 
O borbulhar de espuma branca onde o barco de borracha afundara começava a dar lugar ao azul das águas do mar e o zunido, embora ainda presente, principiava a baixar de volume. Finalmente, uma cabeça ofegante aparece à superfície, logo seguida de outra cuspindo ar misturado com água salgada por todos os orifícios.

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sexta-feira, 4 de março de 2016

A Ilha da Vergonha (013)

"Não havia dúvida. Havia alguma coisa debaixo de água."

Duas potentes remadas levaram o bote até ao canto mais escuro da gruta.
– Mantêm-no firme! Eu vou ver.
Inclinou-se para fora e, antecipando uma arrepiante água gelada, mergulhou a cabeça, mantendo-a submersa por alguns segundos. Quando voltou a emergir, aspirou rapidamente umas quantas golfadas de ar enquanto agitava com força a cabeça para expelir o excesso de água dos ouvidos.
– Então? – Perguntou o companheiro, ansioso.
– É uma argola de ferro. Não parece estar enferrujada e está a cerca de vinte centímetros de profundidade. Acho que consigo chegar-lhe, se me segurares pelo cinto.
– Para que servirá?
– Sei lá. Talvez fosse um antigo ancoradouro. – Respondeu, encolhendo os ombros. – Em todo o caso, o tenente mandou verificar tudo, e é o que pretendo fazer.
Paiva tinha servido como segundo subsargento da marinha, antes de ter concorrido para as tropas especiais. Pela sua experiência, sabia que aquilo podia ser tudo menos um ancoradouro. A maré estava baixa pelo que, aquele aro tinha sido colocado naquela posição com o intuito de permanecer escondido, mesmo numa situação de baixa-mar extrema. Ainda por cima, a ausência de ferrugem sugeria um uso constante, restava saber com que finalidade.
– Vamos lá com isso. Tenta puxar a ver o que acontece.
Seguro pelo cinto, o colega de Paiva mergulha outra vez, tentando alcançar o aro. Puxou-o sem dificuldade e este deslocou-se cerca de dez centímetros da rocha. Uma ligeira brisa acariciou os cabelos do subsargento um segundo antes de uma porta da altura de um homem miraculosamente se abrir à sua frente. O susto fê-lo largar o cinto do colega que, sem apoio deslizou para fora fazendo balançar o barco no sentido contrário, o que fez com que o desprevenido Paiva também fosse experimentar a água.
Os dois surgiram logo depois, quase em simultâneo, um de cada lado do bote. Numa situação normal, ambos já teriam iniciado um longo reportório de comentários ofensivos, tendo como alvo a mãe de cada um deles, respectivamente, mas as gargantas não conseguiram expelir um único som por tempo suficiente para que os dois se acalmassem, enquanto olhavam estupefactos a abertura na rocha em formato de porta. Como se fosse combinado, os dois saltaram ao mesmo tempo para dentro do barco e Paiva, mais rápido que o colega, galgou a abertura recentemente aberta levando a lanterna entre dentes.
– Eu vou examinar isto – disse. – Chama o tenente pelo rádio. – E desapareceu na escuridão.
O segundo furriel Lourenço conformou-se mais uma vez. Bem vistas as coisas, tinha a mesma patente que o seu colega da marinha mas, face a ele, acabava por ficar sempre em segundo plano.
«Raios! É sempre a mesma coisa.» – Resmungou entre dentes, enquanto puxava a aba de um dos bolsos unidos com velcro e retirava o auricular que ajustou cuidadosamente ao ouvido. Rodou o botão do rádio e, momentos depois transmitia a descoberta para o tenente.
«Corifeu para posto um.» – A voz do tenente entrava-lhes pelos ouvidos com uma agressividade que o obrigou a baixar o volume. – «Façam um reconhecimento e voltem à base.»
«Afirmativo! Posto um desligado.»
Guardou novamente o auricular e, manobrando o barco, aproximou-se mais da entrada por onde o colega tinha desaparecido. A lanterna iluminou o que parecia ser um corredor com cerca de três metros de comprido, fazendo em seguida uma curva em “L” para a esquerda.
– Paiva! – Gritou.
Silêncio.
– Paiva! – Voltou a chamar.
– Acho que encontramos. – Respondeu ao fim de alguns segundos, com a voz acompanhada por um ligeiro eco. – Espera um minuto, vou tirar algumas fotos. De certeza que o tenente vai querer ver isto.
Paiva encontrava-se agora numa sala escavada na rocha de uma forma quase quadrangular. Pequenos traços de luz chegavam até ele por frestas no tecto, cortando a escuridão como um raio laser, e um cheiro putrefacto, uma mistura de dejectos humanos com algas em decomposição, castigou-lhe as narinas de tal forma que a surpresa o fez suster a respiração.
A lanterna iluminava agora todos os cantos do recinto. Tinha sinais de estar habitado.


Desde a última missão que o equipamento da equipa tinha sido revisto e melhorado. Agora, incluía também uma câmara digital à prova de água com pouco mais de três milímetros de espessura. Depois de se certificar que a sala estava vazia e não o esperava nenhuma surpresa desagradável, passou a lanterna para a mão esquerda e, com a outra mão, apontou a pequena máquina fotográfica na direcção do foco de luz. Um após outro, todos os pormenores da tosca sala foram fotografados: à sua frente, uma cama de ferro com algumas lascas de tinta que teimavam ainda em prevalecer sobre a ferrugem, suportava um minúsculo colchão e dois cobertores, corroídos pelo tempo; ao lado, uma cadeira de madeira com um buraco no centro alojava um penico de ferro quase cheio e meio rolo de papel higiénico pendurado nas costas; uma mesa com pouco mais de meio metro de comprimento e duas cadeiras, tentavam equilibrar-se no pavimento irregular; sobre a mesa, um prato de barro e um talher em plástico apresentavam restos, ainda húmidos, de comida; no chão, ao centro, uma carpete brilhante, quase imaculada, contrastava com o resto da sala, albergando uma tigela de barro com uma vela quase gasta no seu interior.
Paiva olhou novamente para cima, para os pequenos fios de luz que rasgavam o tecto da sala, chegando à conclusão que serviriam como respiradouros deixando entrar ar suficiente para que uma pessoa pudesse sobreviver ali dentro, mesmo estando tudo fechado. Já se preparava para retornar ao barco, quando a bota chuta qualquer coisa que vai embater na parede. Apontou automaticamente a luz da lanterna para o sítio onde ouviu o embate e baixou-se para examinar o pequeno objecto cinzento.
Era a bateria de um telemóvel...

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